quarta-feira, 7 de setembro de 2011

 

Caso Clínico 14/09/2011

Um homem de 31 anos com AIDS avançada procurou a emergência por um evento sincopal testemunhado. Ele notou tontura e escurecimento visual enquanto caminhava do banheiro para a sala. Enquanto conversava com seu companheiro, ele subitamente perdeu a consciência e o tônus motor. Sua respiração parecia difícil. Seu amigo ligou para o SAMU. Ele recuperou a consciência após 2 minutos e não se lembrou do evento. Não havia evidência de atividade tônico-clônica ou confusão pós-ictal. Ele negou dor torácica, tosse, palpitações, pleurisia, vertigem, dispnéia, febre, calafrios, náuseas, vômitos ou incontinência.

Onze dias antes ele esteve hospitalizado com febre e piora de uma diarréia crônica. Ele tinha lesões de pele histologicamente consistentes com ectima gangrenoso, embora o GRAM e as culturas sanguíneas e de uma amostra de biópsia tenhan sido negativas. Exame de fezes e culturas foram negativas. Ele melhorou com antibióticos de amplo espectro e ganciclovir. Após 4 dias ele recebeu alta e continuou a receber os antibióticos através de um catéter central de inserção periférica.

A contagem de CD4 mais recente era de 25 células/mm e a carga viral era de 554 cópias/ml. Ele não teve resposta satisfatória a múltiplos regimes antiretrovirais e estava tomando tenofovir, emtricitabina, tipranavir, ritonavir e enfluvirtide. A história pregressa incluia retinite por citomegalovírus, polirradiculopatia, anemia crônica, sarcoma de Kaposi, carcinoma de células escamosas do ânus e hipotensão ortostática. Os medicamentos utilizados eram dapsona, fluconazol, gabapentina, clonazepam, trazodona, folato, citalopram e fludrocortisona. Ele era fumante, mas não bebia ou usava drogas.

No exame inicial na emergência ele tinha temperatura de 37°C, pressão arterial de 70/40 mm Hg, frequência cardíaca de 126 bpm, frequência respiratória de 16, e saturação de 99% em ar ambiente. Ele estava caquético, mas sem sofrimento aparente. As membranas mucosas estavam secas. O exame cardíaco mostrou taquicardia com ritmo regular. As carótids não tinham sopros. Ambos os pulmões estavam limpos à ausculta e seus pés e mãos estavam quentes, com pulsos presentes e com leve edema. Ele não tinha alteração de memória ou outros domínios cognitivos. Os nervos cranianos estavam intactos. A força muscular estava normal e uma manobra de Mingazzinni foi negativa. Testes cerebelares foram normais. Havia diminuição da sensibilidade tátil nos pés. Ele recebeu 3 litros de fluídos intravenosos, com aumento da PA para 100/60 mm Hg e diminuição da FC para 110 bpm.

Laboratório mostrou sódio de 137 mEq/l, potássio de 3.5 mEq/l, uréia de 3 mg/dl e creatinina de 0.6 mg/dl. Havia 2000 leucócitos/mm³ com 82% de neutrófilos e 4% de bastões. O hematócrito era de 28% e as plaquetas de 124.000 mm³. Esses valores não tinham se alterado desde a última admissão. A CK total foi de 27 U/L e a troponina I estava abaixo do nível de detecção do método. O dímero D foi maior que 4000 ng/ml. O parcial de urina foi normal. O ECG mostrou taquicardia sinusal com eixo normal, intervalos normais e alteração difusa da repolarização. Um Rx de tórax não revelou processos cardiopulmonares agudos.

O exame cardíaco foi repetido pela equipe médica e revelou FC de 97 bpm, uma segunda bulha proeminente e uma terceira bulha audível (galope). A pressão venosa jugular foi de 11 cm. Não havia história de pulso paradoxal.


Um ecocardiograma transtorácico demonstrou contração ventricular esquerda normal, porém com acinesia septal. O ventrículo direito estava moderadamente dilatado, com parede livre hipocinética e ápice preservado.

Um procedimento diagnóstico foi realizado.

sábado, 3 de setembro de 2011

 

Caso Clínico 07/09/2011

Um homem diabético de 61 anos foi admitido na emergência queixando-se de dor no olho direito com início há 5 dias, associada a edema e rubor ocular.

Olho vermelho é o sintoma ocular mais comum nos departamentos de emergência. É causado por hiperemia conjuntival, episcleral ou dos vasos ciliares, eritema das pálpebras ou hemorragia subconjuntival. Os principais diagnósticos diferenciais incluem conjuntivite, trauma ou infecção corneanas, glaucoma agudo e uveíte aguda.

Dor ocular pode ser causada por trauma, infecções (conjuntivite), inflamação (uveíte) ou aumento súbito da pressão intra-ocular (glaucoma).

Trauma ocular pode ser causado pela presença de corpos estranhos corneanos ou conjuntivais, corpo estranho intra-ocular, contusões por trauma fechado, e lacerações por trauma penetrante.

Conjuntivite é a doença ocular mais comum. Pode ser aguda ou crônica. A maioria dos casos são causados por bactérias (incluindo gonococo e clamídia) ou vírus. Outras causas incluem doença de Sjogren (ceratoconjuntivite sicca), alergia, irritantes químicos e auto-injúria). O modo de transmissão geralmente é por contato direto, via dedos, toalhas, lentes de contato ou compartilhamento de colírios. Quando a conjuntivite é bacteriana, os organismos isolados mais frequentemente são S. aureus, S. pneumoniae, Haemophilus sp, pseudomonas e moraxella. Todos podem produzir grande quantidade de secreção purulenta. Geralmente é uma infecção auto-limitada, que melhora em 10 a 14 dias, mesmo sem tratamento. Quando se opta por tratar com antibióticos tópicos, colírios de cloranfenicol ou aminoglicosídeo (gentamicina ou tobramicina). Colírios de ciprofloxaxina raramente são justificados, devido à natureza benigna e auto-limitada da infecção.

Conjuntivite gonocócica geralmente é adquirida através de contato direto com secreções genitais. É considerada uma emergência oftalmológica, devido ao risco de envolvimento corneano precoce com risco de perfuração. Quando houver suspeita clínica deste tipo de infecção, uma dose única de ceftriaxona 1 grama IM geralmente é adequada. Antibióticos tópicos como bacitracina ou eritromicina podem ser associados.

Conjuntivite por Clamydia trachomatis é uma das principais causas de cegueira no mundo (tracoma). O tratamento deve ser precoce e feito com azitromicina oral na dose de 20 mg/kg em dose única (1 grama em adultos). Colírio ou pomada ocular não são necessários.

Quando a conjuntivite é viral, o adenovírus tipo 3 é o agente mais comum. Geralmente a conjuntivite está associada com faringite, febre, mal estar e adenopatia pré-auricular. A secreção ocular é mais aquosa do que purulenta. Crianças são mais susceptíveis que adultos e piscinas são fontes comuns de contaminação. A duração da doença geralmente é de 10 dias.

A ceratoconjuntivite sicca da síndrome de Sjogren afeta principalmente mulheres idosas. Olhos secos são a marca registrada da doença. Outras condições que podem causar olhos secos incluem idade avançada, uso de medicamentos tópicos ou sistêmicos (estrógenos), clima seco e quente e blefarite.

Conjuntivite alérgica pode ou não estar associada com outras doenças atópicas como asma, rinite e dermatite atópica. Geralmente os pacientes se queixam de prurido ocular.

Uveíte é causada por inflamação do trato uveal, que é formado pela íris (irite), corpo ciliar (ciclite) e coróide (coroidite).

Doença inflamatória ocular pode também se originar primariamente da retina (retinite) ou dos vasos sanguíneos retinianos (vasculite de retina). Inflamação ocular pode ser classificada como uveíte anterior, uveíte posterior ou panuveíte. Também pode ser classificada como aguda ou crônica e granulomatosa ou não-granulomatosa.

Uveíte anterior não-granulomatosa se apresenta com dor ocular unilateral, rubor ocular, fotofobia e perda visual. Uveíte anterior granulomatosa é mais indolente, causando visão borrada e leve inflamação ocular. Uveíte posterior tende a se apresentar com perda visual gradual sem outros sinais oculares importantes. Frequentemente é bilateral. Em muitos casos a patogênese da uveíte é primariamente imunológica, mas infecções podem ser a causa, particularmente em pacientes imunodeprimidos. Uveíte anterior não-granulomatosa geralmente é causada por doenças sistêmicas relacionadas com o HLA-B27, incluindo espondilite anquilosante, artrite reativa, psoríase e doenças inflamatórias intestinais. Tanto herpes simples como herpes zoster podem causar uveíte anterior não-granulomatosa. A doença de Behcet geralmente causa uveíte anterior e posterior. Doenças causando uveíte anterior granulomatosa também tendem a causar uveíte posterior, incluindo sarcoidose, tuberculose, sífilis, toxoplasmose e síndrome de Vogt-Koyanagi-Harada (uveíte bilateral, alopécia, despigmentação das pálpebras, sombrancelhas ou cabelo, vitiligo e perda auditiva). A sífilis produz um fundo de olho com padrão em sal e pimenta, frequentemente com pouca perda visual quando não há comprometimento associado do nervo óptico. Os principais patógenos envolvidos com inflamação ocular em AIDS são o citomegalovírus, herpes simples, herpes zoster, micobactérias, criptococos, toxoplasma e candida. Uveíte anterior geralmente responde a corticosteróides tópicos. Ocasionalmente corticosteróides sistêmicos são necessários. Dilatação da pupila é importante para aliviar o desconforto e prevenir sinéquia posterior.

Uveíte posterior mais frequentemente requer corticoterapia sistêmica e ocasionalmente imunossupressão com azatioprina, tacrolimus, ciclosporina ou micofenolato mofetil. Dilatação pupilar não é necessária. Se uma causa infecciosa for identificada, antibióticos específicos devem ser utilizados. O prognóstico da uveíte anterior geralmente é melhor que da uveíte posterior.

Glaucoma agudo de ângulo fechado ocorre devido ao fechamento de um ângulo da câmara anterior previamente estreito. O fechamento do ângulo pode ocorrer quando há dilatação da pupila (entrar em locais escuros, excitação emocional e uso de midriáticos). O uso de medicamentos sistêmicos como anticolinérgicos (atropina, tricíclicos), simpaticomiméticos (descongestionantes nasais, broncodilatadores) ou tocolíticos também podem precipitar glaucoma. Topiramato é outra droga que pode precipitar glaucoma agudo secundário. Os pacientes com glaucoma agudo se apresentam com dor intensa e visão borrada, geralmente com a formação de halos ao redor da luz. Náuseas e dor abdominal também podem ocorrer, e esta condição algumas vezes pode ser confundida com abdome agudo. Olho vermelho e pupila moderadamente dilatada e não-reagente são comuns. A pressão ocular frequentemente está acima de 40 mmHg. O tratamento inicial deve ser com o objetivo de diminuir a pressão intra-ocular. Uma dose única de 500 mg de acetazolamida EV seguida de 250 mg VO a cada 6 horas geralmente é suficiente. Quando não há resposta, o uso de diuréticos osmóticos como manitol na dose de 1 a 2 g/kg pode ser necessário. Após a pressão intra-ocular começar a cair, colírio de pilocarpina a 4% a cada 15 minutos por uma hora e após a cada 6 horas é efetivo para reverter o fechamento do ângulo. O tratamento definitivo é iridotomia a laser ou cirúrgica. As causas precipitantes devem ser revertidas. Se o glaucoma agudo não for revertido dentro de 2 a 5 dias pode haver perda visual severa e permanente. Os pacientes afetados necessitam observação quanto ao desenvolvimento de glaucoma crônico.

Algumas cefaléias primárias também podem causar dor predominantemente nos olhos (retro-orbital), principalmente cefaléia em salvas, hemicrânia paroxística crônica e SUNCT (Short lasting, Unilateral, Neuralgiform, Conjuntival Tearing).

Arterite de células gigantes (arterite temporal) pode se manifestar com dor ocular e na região temporal, geralmente associada com claudicação mandibular e manifestações sistêmicas (emagrecimento, sudorese noturna, fadiga, artralgias, febre).

Neuralgia do trigêmio pode raramente ocorrer no ramo oftálmico e simular dor no olho.

Herpes zoster oftálmico é outra doença que deve ser considerada no diagnóstico diferencial.

O paciente foi examinado em outra emergência poucos dias antes e foi diagnosticado com herpes zoster oftálmico, para o qual ele recebeu aciclovir e hidrocodona ambulatorialmente.

Infecção cutânea vesicular pelo vírus varicela zoster causa o herpes zoster. Os locais mais frequentemente acometidos são o território do nervo oftálmico (herpes zoster oftálmico) e os dermátomos torácicos, embora qualquer dermátomo possa ser afetado. O envolvimento isolado geralmente não implica em malignidade ou imunossupressão, ao contrário do envolvimento disseminado. Pacientes HIV-positivos são vinte vezes mais susceptíveis a adquirir a doença, frequentemente antes das outras manifestações da doença. Um teste anti-HIV é recomendável em pacientes com herpes zoster antes dos 55 anos. Dor geralmente ocorre em torno de 48 horas antes da erupção e pode persistir ou mesmo aumentar de intensidade após o desaparecimento das lesões. Eventualmente, a dor pode ocorrer sem o aparecimento das vesículas (herpes non-herpete). Embora as vesículas caracteristicamente obedeçam a um padrão dermatômico, até 20 vesículas podem ser encontradas fora do dermátomo acometido. Os linfonodos regionais podem estar aumentados e dolorosos. O herpes zoster oftálmico pode invadir o olho e causar perda visual. A presença de vesículas na asa do nariz é um fator preditor de envolvimento ocular. Neuralgia pós-herpética é mais comum em herpes oftálmico e em pacientes com mais de 55 anos. O tratamento precoce (dentro de 72 horas) com terapia anti-viral agressiva reduz a severidade e a duração da neuralgia pós-herpética. Logo, os pacientes com maior risco de desenvolver neuralgia pós-herpética, como idade acima de 55 anos, devem ser tratamento precocemente. Pacientes jovens com dor moderada a intensa também podem se beneficiar de anti-virais. A droga de escolha é o aciclovir na dose de 800 mg VO 5 vezes ao dia, famciclovir 500 mg a cada 8 horas ou valaciclovir 1 g a cada 8 horas, todos por 7 dias. As doses devem ser corrigidas para a função renal. Os corticosteróides são efetivos em reduzir a dor na fase aguda, mas não para prevenir neuralgia pós-herpética. Eles não aumentam o risco de disseminação do herpes em pacientes imunocompetentes. A dose usual da prednisona é de 60 mg/dia com redução gradual da dose durante 3 semanas é indicado em associação com o aciclovir. Os pacientes imunocomprometidos devem ser tratados com os agentes anti-virais citados acima nas mesmas doses, porém pelo tempo que for necessário para a cicatrização das feridas. Progressão da doença em uso de terapia oral deve motivar o uso EV do aciclovir na dose de 10 mg/kg a cada 8 horas. Se após 4 dias houver melhora clínica, os agentes orais podem ser prescritos novamente. Nos pacientes que não respondem ao aciclovir, o foscarnet, na dose de 40 mg/Kg EV a cada 8 a 12 horas é o tratamento de escolha. Como os corticosteróides aumentam o risco de disseminação nos pacientes imunocomprometidos, eles não devem ser dados neste contexto. Se os pacientes desenvolverem neuralgia pós-herpética, o tratamento é com creme de capsaicína 0.025 a 0.075% ou com patch de lidocaína. Amitriptilina em doses de 25 a 75 mg ao dia e gabapentina em doses de 900 a 3600 mg ao dia em três doses diárias são as principais drogas orais efetivas. Nos pacientes que não respondem, bloqueios regionais dos gânglios envolvidos ou dos nervos periféricos podem ser tentados.

Desde que ele começou a tomar aciclovir ele notou piora da dor e do edema no olho. Ele também notou diplopia binocular e diminuição da acuidade visual à direita. No dia da admissão ele sentiu náuseas e vômitos e o edema piorou a ponto de não conseguir abrir o olho afetado.

Edema ocular com diplopia geralmente indica algum grau de proptose com oftalmoplegia. Quando o olho parece assimétrico, o médico precisa decidir qual está anormal. Se o olho estiver para dentro chamamos de enoftalmia. Se estiver para fora chamamos de exoftalmia ou proptose.

O desenvolvimento de proptose implica numa lesão ocupando espaço na órbita ou retro-orbital (seio cavernoso), e geralmente necessita TC ou RM para definição diagnóstica.

Oftalmopatia de Graves é a causa líder de proptose em adultos. A proptose geralmente é assimétrica e ocasionalmente parece ser unilateral. Inflamação orbital e hipertrofia dos músculos extraoculares, particularmente do reto medial e reto inferior, são os principais responsáveis pela protrusão do globo ocular. Exposição corneana, retração palpebral, injeção conjuntival, restrição do olhar vertical ou horizontal, diplopia e perda visual por compressão do nervo óptico são os sinais cardinais. Sintomas sistêmicos de hipertireioidismo estão presentes. O diagnóstico é confirmado com a dosagem dos hormônios tireoidianos. Oftalmopatia de Graves é tratada com prednisona oral na dose de 60 mg/dia por 30 dias, seguida por diminuição lenta nos próximos meses. Procedimentos cirúrgicos podem ser necessários nos casos refratários. Pseudotumor orbital é uma doença inflamatória idiopática, frequentemente confundida com a oftalmopatia de Graves. Os sintomas mais comuns incluem dor e congestão ocular, proptose e limitação dos movimentos oculares.
Avaliação para sarcoidose, granulomatose de Wegener e outros tipos de vasculites é negativa. Exames de imagem geralmente mostram edema dos músculos oculares externos (miosite orbital) com alargamento dos tendões (ausente na oftalmopatia de Graves).

Quando a inflamação orbital se estende pela fissura orbital superior até o seio cavernoso, a síndrome de Tolosa-Hunt deve ser considerada. O diagnóstico destas doenças pode ser difícil. A biópsia da órbita geralmente mostra infiltração gordurosa por linfócitos, plasmócitos e eosinófilos. Resposta dramática aos corticosteróides (prednisona 60 mg/dia) geralmente fornece uma evidência importante para o diagnóstico.

Celulite orbital causa dor, eritema palpebral, proptose, injeção conjuntival, restrição dos movimentos oculares, diminuição da acuidade visual, defeito pupilar aferente, febre e leucocitose. Geralmente se origina de infecção dos seios paranasais, especialmente por disseminação contígua da infecção do seio etmóide através da lâmina papirácea da superfície medial da órbita. Uma história recente de infecção do trato respiratório superior, sinusite crônica, secreção mucosa espessa ou doença dentária é significativa em qualquer paciente com suspeita de celulite orbitária. Hemoculturas devem ser obtidas em todos os pacientes com suspeita de celulite, mas geralmente são negativa. A maioria dos pacientes responde ao tratamento empírico com antibióticos de amplo-espectro. Doença fúngica (mucormicose) deve ser considerada em pacientes diabéticos. Ocasionalmente, celulite orbital segue um curso fulminante, com proptose maciça, cegueira, trombose do seio cavernoso e meningite, especialmente em pacientes imunocomprometidos. Para impedir este desastre, celulite orbital deve ser manejada agressivamente com imagem da órbita e antibióticos e antifúngicos. Drenagem cirúrgica deve ser indicada precocemente nos casos de deterioração visual, apesar do uso correto dos antimicrobianos.

Tumores da órbita causam proptose progressiva e indolor. Os tumores primários mais comuns são hemangiomas, linfangiomas, neurofibromas, cistos dermóides carcinomas císticos adenóides, gliomas do nervo óptico e tumores benignos da glândula lacrimal. Tumores metastáticos para a órbita incluem carcinoma de mama, carcinoma de pulmão e linfoma.

Fístulas carótido-cavernosas geralmente causam proptose pulsátil, diplopia, glaucoma, restrição dos movimentos oculares e hiperemia ocular. Geralmente são causadas por trauma. Algumas fístulas podem ser menos proeminentes e causadas por malformações arteriovenosas durais e são mais comuns em mulheres idosas. Os sinais são mais sutis e o diagnóstico pode ser difícil. A presença de proptose discreta, diplopia, músculos extraoculares alargados e injeção conjuntival é frequentemente confundida com oftalmopatia de Graves. Um sopro auscultado na órbita ou na cabeça é uma pista diagnóstica. Estudos de imagem mostram alargamento da veia oftálmica superior na órbita. O tratamento geralmente é feito por embolização intravascular.


No exame físico os sinais vitais estavam estáveis e normais. A acuidade visual no olho esquerdo estava normal (20/25). No olho direito ele foi capaz de apenas perceber feixes luminosos. Adicionalmente, o olho direito apresentava ptose da pálpebra superior, proptose generalizada e leve eritema periorbital com edema associado. Os movimentos extraoculares do olho direito estavam perdidos em todas as direções. A pupila direita tinha 8 mm de diâmetro e era não reativa à luz. A pressão intraocular de ambos os olhos estava normal (12 mm Hg). Uma TC da face e do crânio e uma ressonância magnética da órbita e do encéfalo foram obtidas. Qual o diagnóstico final e o diagnóstico diferencial?


Perda aguda da acuidade visual pode ocorrer em diversas doenças oftalmológicas ou neurológicas incluindo isquemia de artérias retinianas, neuropatia óptica isquêmica, neurite óptica, neuropatia óptica tóxica, descolamento de retina, hifema, glaucoma agudo e uveíte. Doenças ocupando espaço na órbita podem causar diminuição da acuidade visual devido à compressão do nervo óptico.

A presença de ptose e midríase não-reativa à direita sugere o comprometimento do III par craniano neste lado e a incapacidade de movimentar o olho em todas as direções sugere que os nervos troclear e abducente também estão envolvidos. O acometimento dos três nervos motores oculares sugere lesão da órbita, da fissura orbital superior ou do seio cavernoso, onde os três nervos podem ser encontrados em proximidade.

O diagnóstico final foi de mucormicose rinocerebral, uma doença infecciosa invasiva e agressiva causada por fungos da classe dos phycomycetos. Os gêneros que tipicamente causam infecção são Rhizopus, Rhizomucor, Absidia e Basidiobolus. Os esporos destes fungos são ubíquos e entram no corpo humano através da boca e do nariz. Indivíduos imunocompetentes fagocitam estes esporos, não desenvolvendo a doença. Infecção é mais comum em imunodeprimidos, especialmente em pacientes diabéticos não controlados, frequentemente no contexto de cetoacidose metabólica diabética. Outro grupo muito susceptível é o de pacientes recebendo terapia quelante com deferoxamina.

A mucormicose rinocerebral é descrita quase que exclusivamente em pacientes com sistemas imunes comprometidos ou com anormalidades metabólicas. Os esporos se ligam à mucosa nasal ou oral, onde ocorre germinação maciça e formação de hifas, permitindo que o fungo invada diretamente os vasos sanguíneos. Áreas de infarto isquêmico e necrose são vistas no tecido infectado. Os fungos invadem a luz dos vasos sanguíneos e causam trombose devido à oclusão vascular vasculítica. A infecção geralmente inicia da cavidade nasal e nos seios maxilares , permitindo a invasão de estruturas contíguas como palato, órbita, seios etmóides e cérebro. O envolvimento orbital ocorre quando os seios etmóides são afetados.

Disseminação intracraniana ocorre através da artéria oftálmica, fissura orbital superior ou placa cribiforme. Mucormicose rinocerebral é geralmente fulminante e tem alta morbidade e mortalidade, apesar da melhora do diagnóstico e tratamento. As taxas de mortalidade variam de 30 a 70%, sendo maiores em idosos. A mortalidade é menor em diabéticos que em não-diabéticos. Morte geralmente ocorre em 2 semanas nos pacientes não tratados. Nos pacientes que sobrevivem é comum a ocorrência de sequelas visuais e neurológicas, tais como cegueira e déficit de nervos motores oculares.

As manifestações clínicas incluem dor facial e orbital febre, celulite orbital e periorbital, proptose, descarga nasal purulenta e necrose mucosa que aparece como descarga preta na nasofaringe, orofaringe e tecidos adjacentes da órbita e seios paranasais. Estas manifestações não são universalmente vistas, necessitando um alto índice de suspeita, principalmente em indivíduos diabéticos. O envolvimento ocular leva a um déficit pupilar aferente e perda da acuidade visual.

Extensão progressiva da necrose para o cérebro pode levar a trombose do seio cavernoso e formação de abscesso. Pode haver alteração da consciência, convulsões, afasia e hemiplegia. Os pacientes com cetoacidose diabética são mais susceptíveis, mas infecções oportunistas também podem se desenvolver em pacientes recebendo deferoxamina (ex. pacientes com insuficiência renal crônica), ou com imunossupressão de outras causas (particularmente pacientes com neutropenia ou aqueles recebendo altas doses de corticosteróides).

O estudo diagnóstico de escolha é a TC da órbita e dos seios paranasais. Em pacientes afetados, a TC demonstra edema de partes moles, espessamento da mucosa dos seios paranasais e erosão óssea. Envolvimento intracraniano, incluindo dos seios cavernosos pode estar presente.

Imagem por ressonância magnética, se disponível, pode mostrar extensão da infecção para os vasos ao redor, gordura orbital, músculos extraoculares e cérebro adjacente. Biópsia urgente é geralmente indicada. Tecido edematoso e necrótico com infiltrado neutrofílico é frequentemente visto com elementos fúngicos visíveis.

O tratamento é através da administração de anfotericina B EV na maior dose tolerada pelo paciente. Os pacientes devem ser monitorizados quanto a função renal e outros sintomas de toxicidade como febre, náuseas, vômitos, flebite, anemia e anormalidades eletrolíticas (principalmente hipocalemia). Anfotericina B lipossomal pode ser mais eficaz, menos tóxica e permitir maiores doses sem toxicidade. Adicionalmente, irrigação local de áreas afetadas por necrose e pobremente perfundidas com anfotericina B pode ser útil. Tratamento adequado das condições subjacentes (hipóxia, acidose, hiperglicemia e anormalidades eletrolíticas) e descontinuação de qualquer agente imunossupressor são importantes.

Uma avaliação do infectologista é recomendável em todos os pacientes. Debridamento cirúrgico agressivo de emergência de todo tecido necrótico é necessário. Algumas vezes, múltiplos procedimentos são necessários para retirar todo o tecido necrótico. O efeito vaso-oclusivo da mucormicose leva a sangramento infreqüente dos tecidos envolvidos. Portanto, debridamento dos tecidos afetados até o surgimento de tecido normal bem perfundido é ideal. Irrigação intra-orbital de anfotericina pode ser considerada como tratamento adjunto. A cirurgia pode ser desfigurante. Enucleação da órbita, assim como remoção dos seios paranasais pode ser necessária. Alguns autores têm sugerido oxigênio hiperbárico como tratamento adjunto. Cirurgia reconstrutiva após resolução completa da infecção deve ser considerada.

Uma abordagem multidisciplinar é fundamental para o tratamento desta grave doença.

O neurologista é necessário para avaliar a neuropatia óptica e a oftalmoplegia.

O oftalmologista pode fornecer avaliação da órbita, assim como realizar o debridamento e reconstrução, com ajuda do otorrino, na abordagem da cavidade nasal e seios paranasais.

O infectologista pode ser consultado para o tratamento com anfotericina B.

O clínico e o endocrinologista são importantes para o controle da doença de base, frequentemente uma cetoacidose diabética ou diabetes mal-controlado.

O neurocirurgião pode ser necessário para a abordagem intracraniana.

As principais complicações da mucormicose rinocerebral incluem invasão intracraniana, trombose do seio cavernoso, cegueira, oclusão da artéria central da retina e obstrução das vias aéreas causada por infecções da cabeça e do pescoço (com disseminação para a carótida ou para o mediastino). O prognóstico é reservado.

Neste paciente, o tratamento com anfotericina B foi prontamente iniciado. TC da órbita e dos seios paranasais demonstrou nível líquido no seio maxilar direito, espessamento mucoso do seio etmóide direito e celulite pré-septal. A RM do crânio mostrou captação da gordura intraconal e dos músculos extraoculares à direita. O paciente recebeu debridamento de emergência dos seios paranasais e uma biópsia foi realizada. O estudo patológico mostrou angeíte fúngica e inflamação orbital consistente com mucormicose. O paciente submeteu-se a três cirurgias adicionais, incluindo enucleação do olho direito e recebeu oxigênio hiperbárico. Após hospitalização por três semanas, ele recebeu alta para casa em boas condições de saúde.


sábado, 27 de agosto de 2011

 

Caso Clínico 31/08/2011

Um homem de 68 anos foi visto na clínica neurológica por dificuldade de deglutição há 10 anos. Nos últimos 3 anos sua deglutição tem se tornado mais problemática, afetando a ingestão de sólidos mais que líquidos. Ele também notou que as pálpebras estavam levemente caídas, tendo realizado uma blefaroplastia bilateral para este problema aproximadamente seis anos atrás. Uma nova blefaroplastia foi repetida no olho direito há 4 anos atrás. Ocasionalmente ele apresentava diplopia leve, mais evidente no final da tarde ou quando estava fatigado. Fora essas dificuldades ele não tinha queixas de fraqueza muscular nos membros, assim como não tinha problemas para caminhar ou para qualquer outra atividade diária de rotina. Ele negava dor muscular, artralgia ou rash cutâneo.

História Médica Pregressa incluia hipertensão arterial, dislipidemia, doença coronariana com história de 3 angioplastias com colocação de “stents”, colecistectomia e blefaroplastia.

As medicações utilizadas eram atenolol 50 mg a cada 12 horas, clopidogrel 75 mg ao dia, aspirina 325 mg ao dia, atorvastatina 40 mg ao dia e trandolapril 4 mg ao dia. Suplementação com oléos de peixe diária.
Ele negava tabagismo, porém usava álcool rotineiramente em quantidades moderadas. Aposentado como funcionário público.

Seu pai, dois irmãos, e uma irmã tiveram problemas com quedas da pálpebra. Dois irmãos tiveram dificuldade de deglutição. Ele é originário do Canadá francês.

Não havia história de febre, calafrios, náuseas ou perda de peso. Ausência de dificuldade respiratória, tanto durante o exercício como deitado. Ele negava diarréia ou constipação, incontinência urinária ou fecal.

Ao exame físico o paciente parecia bem vestido, nutrido, aparentando sua idade real. O pulso era de 52 bpm, FR 18/min, PA 123/72 mmHg. Estava anictérico, narinas e orofaringe normais e as mucosas estavam hidratadas. Não havia rigidez de nuca, linfonodos palpáveis, tireomegalia ou sopros de carótidas. Os campos pleuropulmonares estavam livres à ausculta. Bulhas rítmicas, normofonéticas e sem sopros. Ausência de distensão jugular.
Abdomen flácido, indolor à palpação, com ruídos hidroaéreos presentes. Ausência de hepato ou esplenomegalia. Pulsos presentes e simétricos. Ausência de cianose ou edema, e ausência de linfadenomegalia em membros.

Exame Neurológico
Estado Mental: Alerta e orientado, com linguagem e conteúdo do pensamento adequados para a ocasião.
Nervos Cranianos: I. Não testado. II. Campos visuais normais à confrontação. Pupilas simétricas, arredondadas e reativas à luz. Funduscopia normal. III/IV/VI. Havia discreta diplopia (subjetiva) ao olhar lateral, que não se alterava com a sustentação do movimento ocular. Não havia restrição aos movimentos oculares. Havia ptose parcial bilateral, que permanecia fixa com a sustentação do movimento ocular para cima. V. Sensibilidade facial normal. Reflexo corneo-palpebral intacto bilateralmente. Força dos músculos masseteres e temporais normal bilateralmente. VII. Motricidade facial preservada. VIII. Audição intacta para fricção dos dedos bilateralmente. IX, X. Elevação do pálato simétrica, com úvula na linha média. Reflexo do vômito intacto. Ele deglutiu 50 ml de água sem interrupções ou engasgos. XI. Elevação do ombro e lateralização do pescoço normais bilateralmente. XII. Língua protruia na linha media, sem atrofia ou fasciculações.

Exame motor: Ausência de espasticidade. A força foi 5 /5 no deltóide direito e 4+/5 no deltóide esquerdo. A força do biceps foi 5/5 à direita e 5 /5 à esquerda. A força do triceps foi 5/5 bilateralmente. A força dos extensores do punho foi 5/5 bilateralmente. Flexores do punho, extensores dos dedos, e flexores dos dedos tinham força normal bilateralmente. Os flexores do quadril tinham força 4+/5 bilateralmente. A força dos demais músculos dos membros inferiors foi de 5/5. Ele não mostrou fadigabilidade com contrações repetidas dos deltoids contra a resistancia; assim como não houve piora da ptose após o esforço repetitivo.

Reflexos: Os reflexos eram 2+/4, simétricos no bíceps, tríceps, braquiorradial, patelar, and aquileu. Não havia relaxamento retardado após as percussões em todos os tendões testados. O reflexo cutâneo-plantar foi flexor bilateralmente. Sinal de Hoffman ausente.

Coordenação: normal bilateralmente nos membros superiores e inferiores.

Sensibilidade: Intacta para o tato, dor, vibração, sensoposição, e temperatura.

Marcha: Foi capaz de caminhar normalmente, tanto na ponta dos pés como nos calcanhares. A marcha pé-ante-pé foi realizada sem dificuldades. O teste de Romberg foi negativo.

O hemograma foi normal. Glicose 98 mg/dl, uréia 21 mg/dl, creatinina 1 mg/dl, sódio 138 meq/l, potássio 5,2 meq/l, cloro 100 mEq/l, cálcio 5,2 mEq/l, CO2 32 mEq/l, ALT 37 U/L, AST 28 U/L. CK total, lactato venoso e arterial normais. Anticorpos contra os receptores da acetilcolina foram negativos.

Um procedimento diagnóstico foi realizado.



Resumo do Caso:

Este homem de 68 anos apresentou ptose bilateral, diplopia e disfagia iniciando na sexta década com progressão lenta. Os sintomas eram mais proeminentes próximo do final do dia, como visto em muitas doenças neurológicas, entretanto, ele não relatou piora importante após uso repetido ou alívio dos sintomas com repouso que são característicos da fraqueza miastênica. Ao contrário da miastenia adquirida, sua doença era familiar, com herança autossômica dominante com transmissão paterna. Sua origem étnica era o Canadá francês. Avaliação clínica e oftalmológica , assim como estudo da deglutição foram compatíveis com os déficits clínicos. Estes achados em conjunto fortemente sugerem o diagnóstico clínico de distrofia muscular oculofaríngea. Após ampla discussão com o paciente ele preferiu não realizar o teste genético para a confirmação definitiva da doença.

Várias doenças podem mimetizar a distrofia muscular oculofaríngea. Ela é frequentemente confundida com miastenia gravis devido ao envolvimento ocular e bulbar proeminentes, e não é incomum, pacientes sem uma história familiar clara, receberem terapia imunossupressora desnecessária. Neste paciente, a natureza fixa do déficit, a falta de fadigabilidade, e um resultado negativo para anticorpos contra os receptores da acetilcolina são dados fortes contra o diagnóstico de MG. Na avaliação de pacientes com suspeita diagnóstica de doenças da junção neuromuscular, estimulação nervosa repetitiva pode detectar respostas decrementais ou incrementais e a eletromiografia de fibra única pode ser útil para confirmar o diagnóstico. Devido ao risco de Bradicardia sintomática, nós não recomendamos o uso de rotina do teste do Tensilon em idosos como screening diagnóstico para MG.

Doenças mitocondriais podem se apresentar com oftalmoplegia externa progressiva crônica. Muitas dessas doenças são herdadas da mãe, pois o DNA mitocondrial está presente apenas no óvulo e ausente no espermatozóide, embora alguns genes que codificam proteínas mitocondriais sejam encontrados dentro do genoma celular, sendo possível a transmissão não materna dessas doenças. Entretanto, não havia nesse paciente nenhuma evidência de envolvimento multi-sistêmico inexplicado, portanto a possibilidade de doença mitocondrial não foi considerada a fundo no diagnóstico diferencial. Em pacientes com alta suspeita de doença mitocondrial, uma biópsia muscular com análise histoquímica procurando fibras vermelho-rasgadas (ragged red fibers), ensaios imunohistoquímicos de atividade enzimática, estudos genéticos do DNA mitocondrial e testes do exercício podem ser realizados para confirmar o diagnóstico.

Miopatia Inflamatória, mais frequentemente dermatomiosite, pode também se apresentar com disfagia inexplicada. Entretanto, o grau de envolvimento ocular, a ausência de rash característico e os níveis normais de CPK são inconsistentes com o diagnóstico de dermatomiosite, particularmente em vista da lenta progressão dos sintomas.

Variantes distais das mioptias oculofaríngeas têm sido descritas, mas não foram consideradas consistentes com os sintomas desse paciente.

DISCUSSÃO:

A distrofia muscular oculofaríngea geralmente é uma doença de início tardio, que inicialmente se apresenta com ptose progressiva e disfagia. Taylor descreveu essa síndrome em 1915, relatando quarto membros de uma família canadense com ptose de início tardio e progressiva dificuldade de deglutição, levando à morte por desnutrição. No início dos anos 60, Robert Hayes foi capaz de seguir a mesma família, e identificou membros de duas gerações posteriores que desenvolveram a doença. O nome da doença foi dado em 1962 por Maurice Victor, Robert Hayes e Raymond Adams.

A distrofia muscular oculofaríngea é mais comumente encontrada em certas comunidades étnicas, particularmente entre canadenses franceses e judeus Bukhara vivendo em Israel. A maior incidência de distrofia muscular oculofaríngea é procedente da provincia canadense de Quebec, com frequência estimada de mais de 1 caso para cada 1000 habitantes. Outros focos de alta incidência tem sido identificados no Uruguai, Brasil, restante da América espanhola e no Novo México.

A doença geralmente se apresenta durante a quinta ou sexta décadas de vida com ptose, disfagia e disfonia, envolvendo os músculos estriados da faringe e do terço superior do esôfago. Tardiamente pode ocorrer limitação dos movimentos oculares, fraqueza facial e fraqueza proximal dos membros. A morbidade e mortalidade da doença geralmente ocorrem por complicações de disfunção bulbar, particularmente desnutrição e pneumonia aspirativa.
Tanto formas autossômicas dominantes (OMIM 164300) como recessivas (OMIM 257950) têm sido descritas. O lócus gênico dominante foi primeiramente mapeado por Brais et al (1995) no cromossomo 14q11.1. Eles identificaram uma expansão de repetições do triplete GCG no gene da proteína polyadenulate-binding (PABPN1). Atualmente, um teste de reação em cadeia da polimerase (PCR) está disponível para estabelecer o diagnóstico ou o estado de portador da doença.

Antes da descoberta da mutação genética na distrofia muscular oculofaríngea, o diagnóstico dependia das manifestações clínicas e dos achados inespecíficos da biópsia muscular (perda de fibras musculares, com variação do tamanho das fibras e aumento do número de núcleos). Vacúolos marginados (Rimmed vacuoles) assim como presença de pequenas fibras anguladas têm sido descritos. Entretanto, o achado mais significante é o acúmulo de filamentos tubulares intranucleares com diâmetro externo de 8.5 nm e diamêtro interno de 3 nm na microscopia eletrônica. O mecanismo de doença é atualmente desconhecido.

No atual momento não há tratamento específico para a doença. Modificações da dieta e suplementação alimentar são recomendadas quando necessário. Blefaroplastia com ressecção da aponeurose do elevador da pálpebra e suspensão frontal das sobrancelhas são recomendadas quando a ptose interfere com a visão ou quando dor no pescoço se torna uma complicação devido à dorsiflexão compensatória do pescoço. Miotomia cricofaríngea deve ser considerada em pacientes que desenvolvem disfagia severa ou pneumonia aspirativa recorrente. Infelizmente esse procedimento oferece alívio apenas temporário, pois a disfagia normalmente recorre com o tempo. Gastrostomia pode permitir uma nutrição mais adequada, entretanto seu valor em prevenir aspiração recorrente é questionável.

Diagnóstico Diferencial da Miastenia Gravis

O diagnóstico de Miastenia Gravis é gratificante tanto para médicos como para pacientes devido à gravidade da doença e efetividade do tratamento.

► Algumas doenças neurológicas e outras não-neurológicas podem mimetizar Miastenia Gravis (MG) clinicamente. Portanto, os médicos devem ficar atentos para evitar enganos diagnósticos e eventuais danos aos pacientes.

► Abaixo listamos algumas das mais freqüentes doenças confundidas clinicamente com MG:
• Ptose Palpebral Congênita.
• Miopatias (mitocondriais, metabólicas, endócrinas, inflamatórias, etc)
• Distrofias Musculares (fascioescapulohumeral, oculofaríngea, miotônica)
• Oftalmoparesia Externa Progressiva Crônica
• Síndrome de Kearns Sayre
• Botulismo
• Síndromes Miastênicas Congênitas
• Paralisia de Nervos Cranianos (III, IV e VI)
• Meningites de Base de Crânio (tuberculose, carcinomatose meníngea)
• Afecções do Seio Cavernoso (trombose, aneurisma, fístula carótido-cavernosa, tumores)
• Afecções da Fissura Orbital Superior (tumores, infecções, inflamações)
• Variante de Miller Fisher da Síndrome de Guillain-Barré)
• Síndrome de Horner
• Doença de Graves
• Pseudotumor de Órbita
• Trauma Orbital
• Lesões de Tronco Cerebral
• Hipertensão Intracraniana (com lesão de nervo abducente bilateral)
• Síndrome de Lambert-Eaton
• Botulismo
• Fadiga Subjetiva
• Fibromialgia
• Síndrome da Fadiga Crônica
• Falso-Positivo de Exames Complementares

► Os mimetizantes de miastenia raramente causam fraqueza objetiva flutuante, característica marcante da MG. Por outro lado, a MG raramente causa fraqueza constante ou progressiva.

► A caracterização da flutuação deve ser minuciosa, pois alguns pacientes consideram flutuante algumas condições que, de fato, não o são. O principal exemplo é a diplopia ocasional que ocorre com a mirada em determinado lado (por paralisia de um par craniano). Como ela somente aparece em determinada mirada, o paciente pode a considerar flutuante.

► O contexto clínico e os exames complementares geralmente são suficientes para a distinção de miastenia com as condições mimetizantes.

► Algumas distrofias musculares podem simular MG devido à ptose palpebral, oftalmoparesia, envolvimento bulbar e fraqueza proximal.

► Disfagia e ptose são sintomas comuns na distrofia oculofaríngea. Essa doença geralmente ocorre após a quarta década de vida. Os movimentos oculares algumas vezes são comprometidos, porém os movimentos faciais são poupados. Fraqueza proximal dos membros pode estar presente. O que chama atenção na história é o padrão autossômico dominante de herança, com penetrância completa. O diagnóstico é feito por estudo genético através do aumento de repetições do triplete GCG no gene PABP2.

► A distrofia fascioescapuloumeral apresenta-se com fraqueza facial importante (dificuldade para assoprar, assobiar, sorrir e fechar os olhos). Além disso, sintomas bulbares como disartria e disfagia também são proeminentes. Entretanto, os movimentos extra-oculares são preservados e a fraqueza não é flutuante. A herança é autossômica dominante, mas a penetrância é variável. Uma característica da doença é a fraqueza proximal dos membros superiores com preservação dos deltóides (fenômeno do Popeye). Há alta incidência de perda auditiva. O diagnóstico é feito com exames genéticos através da diminuição do número de repetições D4Z4 no gene afetado.

► Distrofia miotônica pode se apresentar com ptose palpebral, oftalmoparesia, fraqueza facial, disfonia, disfagia, fraqueza proximal e distal de membros. O que chama atenção para o diagnóstico correto é a presença de miotonia à percussão de músculos da mão ou língua. Outras características dos pacientes com distrofia miotônica são catarata, calvície frontal, distúrbios de condução cardíaca, polineuropatia distal leve, diabetes, atrofia testicular e hiperparatireoidismo. O diagnóstico é sugerido pela presença de potenciais miotônicos na EMG de agulha e confirmado pelo estudo genético (aumento do número de repetições do triplete CTG no gene da miotonina proteína-quinase.

► As miopatias mitocondriais (oftalmoplegia externa progressiva, síndrome de Kearns-Sayre e encefalopatia mioneurogastrointestinal) também podem simular MG.

► A oftalmoplegia externa progressiva crônica caracteriza-se por oftalmoplegia progressiva e simétrica. Ao contrário da MG, ela não é flutuante. Também pode apresentar ptose e fraqueza muscular proximal. Alguns pacientes apresentam catarata. A EMG de agulha mostra padrão miopático e a biópsia muscular revela a presença de fibras vermelhas rasgadas e morfologia mitocondrial anormal na microscopia eletrônica.

► A síndrome de Kearns Sayre geralmente se apresenta em fase mais precoce da vida que a MG, entre a segunda e terceira décadas de vida, com oftalmoparesia progressiva, retinopatia pigmentar e defeitos da condução cardíaca. Também pode ocorrer perda auditiva, baixa estatura, anomalias endócrinas, ataxia da marcha e polineuropatia. Uma deleção única do DNA mitocondrial ocorre na maioria dos pacientes. A biópsia muscular mostra fibras vermelhas rasgadas.

► A encefalopatia mioneurogastrointestinal ocorre antes dos vinte anos com fraqueza proximal, oftalmoparesia, leucoencefalopatia progressiva, degeneração da retina, perda auditiva e sintomas gastrointestinais como pseudo-obstrução intestinal e diarréia. Acidose lática pode ser detectada. A biópsia muscular mostra fibras vermelhas rasgadas.

► O botulismo apresenta-se com oftalmoparesia, disfagia, disartria, e fraqueza proximal dos membros. Na forma alimentar, náuseas e vômitos precedem a fraqueza. A progressão da fraqueza é rápida (poucas horas a dias) e insuficiência respiratória pode ocorrer. Os principais dados que ajudam a distinguir crise mistênica de botulismo são a presença nesse último de pupilas dilatadas e pouco reagentes, perda dos reflexos e sintomas autonômicos proeminentes (boca seca, constipação e retenção urinária). A história de ingestão de alimentos enlatados e feridas cutâneas também sugere botulismo. O estudo da estimulação nervosa repetitiva também é importante para diferenciação. No botulismo, ao contrário da MG, as amplitudes dos PAMC (potencial de ação motor composto) são baixas, ocorre resposta incremental com estimulação tetânica (50 Hz) e facilitação persistente pós-exercício (aumento da amplitude do PAMC após 10 segundos de contração muscular).

► As síndromes miastênicas congênitas são doenças hereditárias que ocorrem na infância. Os recém nascidos acometidos apresentam-se com dificuldades de sucção, choro fraco e retardo no desenvolvimento psicomotor. Fraqueza proximal, bulbar e ocular estão presentes. O diagnóstico definitivo é complexo e realizado apenas em centros especializados.

► Paralisias dos nervos cranianos III, IV e VI podem simular MG. Quando a oftalmoplegia for dolorosa, o diagnóstico de MG é improvável. Nessas condições deve-se pesquisar algum processo tumoral, vascular ou infeccioso da órbita ou do seio cavernoso. Além disso, diabetes deve ser considerado, sendo a principal causa de oftalmoparesia dolorosa isolada. A característica da oftalmoparesia diabética é a preservação da pupila quando o III par é acometido. Os exames mais recomendados para investigar a causa de paralisias dos nervos cranianos são a ressonância magnética e a angiografia por RM. Além disso, um líquor deve ser feito para descartar meningite de base do crânio, carcinomatose meníngea e variante de Miller Fisher da síndrome de Guillain Barré. Vale notar que essa última se apresenta com oftalmoparesia, ataxia da marcha e arreflexia, sendo os dois últimos ausentes na MG.

► Ptose palpebral congênita e várias formas adquiridas de ptose devem ser consideradas. A ptose senil provavelmente ocorre por desinserção do músculo elevador da pálpebra por diversas causas como retirada de lentes de contato e cirurgias oftalmológicas. A síndrome de Horner ocorre com ptose, miose e anidrose, embora possa se apresentar isoladamente com ptose. Ela ocorre por lesão no trajeto da via simpática.

► Algumas doenças da órbita como a oftalmoparesia de Graves e pseudotumor orbital apresentam sinais adicionais que facilitam a distinção de MG. A exoftalmia é característica da doença de Graves e a presença de proptose, dor e vermelhidão sugerem pseudotumor ou lesão intra-orbital e de seio cavernoso.

► Lesões de tronco cerebral envolvendo os núcleos dos pares cranianos III, IV, VI, IX, X, XI e XII, além de síndrome de Horner por lesão da via simpática descendente no tronco podem simular MG. Entretanto, esses pacientes apresentam outros sinais de lesão de tronco como alterações do nível de consciência, tetraplegia, ataxia da marcha e distúrbios sensoriais. Exames de imagem como RM geralmente identificam a causa da lesão.

► Quadros de hipertensão intracraniana de qualquer etiologia podem provocar paralisia bilateral de nervo abducente (VI par). Isso provoca alteração do olhar lateral e pode simular MG. Estudos de imagem, fundoscopia para pesquisa de edema de papila e líquor com medida da pressão de abertura podem confirmar o diagnóstico.

► Algumas doenças que mimetizam MG podem preservar os movimentos oculares. A paralisia bulbar progressiva, uma variante da Esclerose Lateral Amiotrófica (doença do neurônio motor) ocorre com disfagia e disartria progressivas. Em fases avançadas, fraqueza e atrofia dos músculos dos membros pode ocorrer. Não há oscilação dos sintomas. O teste do Tensilon® pode ser positivo. Estudo de estimulação nervosa repetitiva pode mostrar resposta decremental, como na MG. Características que ajudam a diferenciação a favor de doença do neurônio motor são a progressividade dos sintomas, a ocorrência de sinais de neurônio motor superior e a presença de desenervação na EMG de agulha.

► A síndrome miastênica de Lambert-Eaton é uma doença da porção pré-sináptica da junção neuromuscular em que anticorpos se formam contra os canais de cálcio voltagem-dependentes resultando em diminuição da liberação de acetilcolina e defeito da transmissão neuromuscular. Ao contrário da MG, ptose palpebral é rara e os movimentos extraoculares são preservados. Insuficiência respiratória é rara. Entretanto, sintomas bulbares como disfagia e disartria ocorrem com frequência, assim como fraqueza proximal dos membros. Uma característica dessa doença é a presença de sintomas autonômicos, presentes em 80% dos pacientes e a ausência de reflexos tendinosos profundos (arreflexia). Metade dos casos estão relacionados com neoplasia subjacente, como carcinoma de pequenas células do pulmão. Nesses pacientes pode ser detectado anticorpos anti-Hu. Alguns casos são auto-imunes. O estudo da estimulação nervosa repetitiva mostra grande resposta incremental após o exercício ou estimulação tetânica (50 Hz). Os anticorpos contra os canais de cálcio também podem ser dosados.

► Os estudos de estimulação nervosa repetitiva, o teste do Tensilon® e a dosagem dos anticorpos contra os receptores de acetilcolina são exames complementares úteis na confirmação diagnóstica da MG. Entretanto, todos eles possuem limitações e a interpretação dos resultados deve sempre ser correlacionada com a clínica.

► Resultados falso-positivos da estimulação nervosa repetitiva podem ocorrer por fatores técnicos ou em outras doenças neurológicas. Artefatos de movimento durante a estimulação repetitiva podem causar resposta decremental, particularmente nos músculos faciais e no trapézio. Por isso, o teste deve ser realizado com a máxima cooperação do paciente e os resultados devem ser checados mais de uma vez para garantir sua confiança. Resposta decremental semelhante à vista em MG também pode ser vista em algumas miopatias, outras doenças da junção neuromuscular e na doença do neurônio motor (ELA). Por outro lado, algumas vezes o resultado pode ser falso-negativo, principalmente em pacientes com miastenia gravis ocular isolada.

► O teste do Tensilon® consiste na administração de edrofônio, um anticolinesterásico de ação rápida. Os pacientes com MG geralmente apresentam importante melhora da força muscular após sua administração, com duração de alguns minutos e retorno à linha de base. O teste é positivo em 90% dos pacientes com MG generalizada, mas também pode ser positivo em outras doenças, como paralisias dos nervos cranianos e outras doenças da junção neuromuscular. Há relatos de falso positivo em pacientes com doença do neurônio motor. Também pode ocorrer falso negativo, principalmente nas formas oculares.

► Os anticorpos contra os receptores da acetilcolina são sensíveis e específicos para MG e são positivos em até 90% dos pacientes com MG generalizada. Esse número cai para 50% nos pacientes com a forma ocular. Todos os pacientes com timoma apresentam elevação dos anticorpos. Muito raramente os anticorpos podem ser detectados em pacientes com cirrose biliar primária, lupus eritematoso sistêmico, esclerose lateral amiotrófica, administração de penicilamina, história de transplante de medula óssea e pacientes com timoma sem MG. Eventualmente, todos esses pacientes podem desenvolver MG posteriormente.

► A síndrome da fadiga crônica pode ser confundida com MG devido à presença de fadiga intensa. Nessa doença, a fadiga deve estar presente por pelo menos 6 meses e deve estar associada com pelo menos 4 dos 8 sintomas seguintes: cefaléia, insônia, dificuldade de concentração e memória, dor de garganta, artralgia, dor no pescoço, cansaço excessivo pós- exercício e mialgia. Outra doença semelhante que deve ser considerada no diagnóstico diferencial é a fibromialgia. Nenhum sintoma ocular ou bulbar está presente nessas doenças. Os estudos de condução nervosa e a EMG de agulha são normais. O teste do tensilon é negativo e os anticorpos contra os receptores de acetilcolina são ausentes.

sábado, 20 de agosto de 2011

 

Caso Clínico 24/08/2011

Um residente de medicina de 40 anos, previamente saudável, se apresentou com uma história de febre e fadiga há 3 semanas. Ele trabalhava em um hospital público.

Apesar da longa lista de causas de fadiga e febre, devemos nos preocupar mais com a possibilidade de uma doença relacionada com um germe adquirido no hospital, desde que o paciente é médico. Fadiga pode ser causada por muitas doenças de diferentes órgãos e sistemas, sendo um sintoma altamente inespecífico, presente em 1 a 3% dos pacientes que procuram atenção médica. Muitas vezes os pacientes confundem fadiga com fraqueza, sendo a primeira uma sensação subjetiva e a segunda um sinal clínico mensurável no exame físico. Entre as doenças mais frequentemente associadas com fadiga estão hipertireoidismo, hipotireoidismo, insuficiência cardíaca, infecções, DPOC, apnéia do sono, síndrome da resistência das vias aéreas superiores, anemia, doenças auto-imunes incluindo esclerose múltipla e miastenia gravis, doenças granulomatosas e câncer. Alcoolismo crônico, uso de medicamentos sedativos e beta-bloqueadores, fibromialgia, síndrome da fadiga crônica e doenças psiquiátricas (ansiedade, depressão, insônia e transtorno somatoforme) são causas comuns de fadiga quando as causas citadas anteriormente são descartadas.
Febre, por outro lado, também é um sintoma secundário a uma grande variedade de doenças, incluindo infecções (causa mais comum), doenças auto-imunes e câncer. Causas menos frequentes incluem doenças do sistema nervoso central (lesões hipotalâmicas), doenças cardiovasculares (TEP, IAM), doenças gastrintestinais (doença inflamatória intestinal), doenças granulomatosas (sarcoidose), uso de medicamentos (antibióticos), síndrome serotoninérgica, síndrome neuroléptica maligna e hipertermia maligna. Alguns pacientes têm febre factícia.

A febre geralmente ocorria no final do dia e era associada com mialgias e calafrios. Ele começou a usar paracetamol e foi visto na emergência local com dor epigástrica. O exame físico, os exames laboratoriais de rotina e um Rx de abdomen foram normais. Na semana anterior ele teve dispnéia quando subia escadas, tosse seca e um episódio único de sudorese noturna. Ele perdeu 2.7 Kg nos últimos 6 meses. Uma revisão detalhada dos sistemas não mostrou outros problemas.

Embora classicamente a febre vespertina seja uma característica da tuberculose, é muito comum que qualquer doença febril siga esse padrão de melhora matinal e piora no final do dia. A medida da temperatura retal é mais confiável que a axilar. Febre geralmente é gerada devido a ação de um estímulo apropriado no organismo, fazendo com que os monócitos e macrófagos produzam citocinas pirogênicas, tais como interleucina 1, fator de necrose tumoral, interferon gama e interleucina 6 que agem com ação no hipotálamo. A elevação na temperatura ocorre devido à produção aumentada de calor (ex. calafrios) ou diminuição das perdas de temperatura (ex. vasoconstrição periférica). A elevação da temperatura em febre induzida por citocinas raramente excede 41 graus, a menos que haja lesão estrutural dos centros termoreguladores hipotalâmicos. Febre e dor epigástrica pode sugerir alguns diagnósticos diferenciais, tais como pancreatite aguda, colecistite aguda, hepatites, abscesso hepático, pneumonia, pericardite, etc. A dispnéia associada com esforços pode ser uma manifestação da fadiga relacionada com a doença de base, anemia subjacente, doença cardíaca causando febre ou doença pulmonar. Tosse seca pode ser vista em muitas infecções virais do trato respiratório, tuberculose, doenças granulomatosas do pulmão (sarcoidose), tumores do trato respiratório, doença intersticial do pulmão, sinusopatia crônica, asma ou refluxo gastroesofágico. A perda de peso também é inespecífica, podendo acompanhar uma grande lista de doenças crônicas, principalmente infecções crônicas, neoplasias e doenças auto-imunes.

O paciente cresceu na Índia, onde foi vacinado com BCG na adolescência. Vinte anos antes ele teve um PPD positivo. Ele morou em Barbados, Jamaica e Bahamas antes de mudar para os EUA 3 anos antes. Não havia história recente de viagens ou picadas de agulha. Ele não se lembrava de ter atendido nenhum paciente com tuberculose ativa, mas foi exposto à varicela no último mês. Ele fumava meia carteira de cigarros por dia e não tomava nenhum medicamento, exceto paracetamol.

A origem indiana do paciente levanta a possibilidade de tuberculose, já que aquele país é a fonte de aproximadamente 80% dos casos de tuberculose do mundo. Barbados, Brasil, Jamaica e Bahamas também são países onde a tuberculose é endêmica. O fato de ter sido previamente vacinado com BCG não descarta esta possibilidade. A positividade do PPD há vinte anos pode ser devido à exposição à vacina, ou mesmo contato com o bacilo, comum em moradores do terceiro mundo. Neste grupo de imigrantes, o PPD é considerado positivo se > 10 mm. Portanto, todos as pessoas que residem no Brasil pertencem a este grupo. Já nos países de primeiro mundo, outros grupos que tem PPD positivo > 10 mm incluem usuários de droga HIV negativos, trabalhadores de laboratório micobacteriológico, residentes e trabalhadores de prisões, asilos, hospitais e abrigos coletivos (ex. albergues). Também pertencem a este grupo pessoas com alto risco para tuberculose, como gastrectomizados, desnutridos, diabéticos, renais crônicos, portadores de algumas doenças hematológicas (leucemias e linfomas), silicoses e algumas malignidades (câncer de cabeça e pescoço e câncer de pulmão). Todas as outras pessoas do primeiro mundo têm valor de PPD normal se até 15 mm. Já alguns grupos de pacientes tem PPD positivo se > 5 mm, incluindo pacientes HIV positivos, contatos recentes de pessoas com tuberculose, pessoas com reações fibróticas no Rx de tórax sugestivas de seqüela de Tb, pacientes transplantados ou recebendo > 15 mg de prednisona por mais de um mês. Um novo PPD pode ser importante neste momento para ver se o paciente é atualmente anérgico. Se ele for reator, não ajuda muito no diagnóstico. O fato de trabalhar em um pronto socorro também expõe este médico a vários agentes infecciosos que podem estar contribuindo para seus sintomas, incluindo a tuberculose. O paciente referiu ter se exposto à varicela, uma doença que pode cursar com sintomas pulmonares. Esta é uma doença altamente infecciosa, que se dissemina por gotículas respiratórias ou contato com as lesões de pele. Os sintomas e as complicações geralmente são mais graves em adultos que em crianças. Pneumonia intersticial pode resultar em síndrome da angústia respiratória aguda. Nos pacientes que sobrevivem pode haver numerosas lesões calcificadas nos pulmões vistas no Rx de tórax. Outras complicações sistêmicas da infecção pelo vírus varicela zoster na varicela incluem vasculite do SNC causando AVC isquêmico, hepatite, encefalite (1:1000), ataxia cerebelar (1:4000), síndrome de Reye em crianças que usam aspirina, mielite, mieloradiculite (particularmente em pacientes HIV positivos), paralisia facial periférica (quando HSV não está implicado), necrose retiniana aguda e malformações congênitas quando ocorre em gestantes (retardo do crescimento, microftalmia, cataratas, corioretinites, surdez e atrofia cerebral). É muito pouco provável que este paciente esteja com complicações pulmonares da varicela sem ter passado pela fase cutânea da doença. O hábito de fumar pode aumentar a susceptibilidade dele a algumas infecções respiratórias. É pouco provável que um câncer pulmonar seja a causa da febre, devido à idade do paciente. Esquistossomose e estrongiloidíase são endêmicas no caribe, e ambas podem cursar com febre e sintomas pulmonares. A esquistossomose aguda, ou síndrome de Katayama corresponde à uma resposta alérgica ao esquistossomo, rara em nativos dos países endêmicos e mais comum em viajantes procedentes de locais não endêmicos. A severidade da doença varia de leve a muito grave com risco de vida. O período de encubação varia de 2 a 8 semanas após a exposição ao esquistossomo. Febre, mal estar, fadiga, urticária, diarréia, mialgia, tosse seca, infiltrado pulmonar, hepatoesplenomegalia e leucocitose com importante eosinofilia são os achados usuais. Como o paciente não viajou a áreas endêmicas no último ano, esta possibilidade pode ser descartada. A estrongiloidíase pode se manifestar com febre, tosse seca, dispnéia, sibilos e hemoptise. Broncopneumonia, bronquite, derrame pleural e abscessos miliares podem se desenvolver. Na síndrome de hiperinfecção por estrongilóides há disseminação das larvas para os pulmões e outros órgãos de forma fulminante. A ausência de sinais sistêmicos e a história negativa de uso drogas imunossupressoras tornam este diagnóstico improvável.

O paciente aparentava boa saúde. Seus sinais vitais e temperatura estavam normais. O exame físico foi normal. Eletrólitos séricos, creatinina, cálcio, função hepatica e hemograma normais.

Tuberculose continua sendo uma forte possibilidade. Infecção aguda pelo vírus HIV também deve ser incluída no diagnóstico diferencial, embora qualquer agente infeccioso possa causar a constelação de sintomas apresentadas pelo paciente. Um Rx de tórax seria fundamental neste momento para definir se há alguma anormalidade que sugira doença pulmonar associada com varicela (lesões perfeitamente arredondadas e calcificadas com 2 a 3 mm de diâmetro) ou uma outra doença infecciosa, como tuberculose.

Um Rx de tórax mostrou numerosos pequenos nodules bilateralmente, com um padrão miliar. O hilo direito, a região paratraqueal direita e a janela aorticopulmonar parecia discretamente maior que há um ano antes, e foi interpretada como representando linfonodos aumentados.

O Rx de tórax de pacientes com tuberculose não é homogêneo, podendo incluir pequenos infiltrados homogêneos, alargamento de linfonodos paratraqueais e hilares, além de atelectasia segmentar. Derrame pleural pode estar presente, especialmente em adultos, algumas vezes como anormalidade radiológica isolada. Cavitação pode ser vista com doença progressiva. Complexos de Ghon (foco primário calcificado) e Ranke (foco primário calcificado e linfonodo hilar calcificado) são vistos numa minoria dos pacientes e representam evidência residual de tuberculose cicatrizada. Reativação da tuberculose está associada com várias manifestações radiográficas, incluindo doença apical fibrocavitária, nódulos e infiltrado pneumônico. A localização usual é no segmento apical ou posterior dos lobos superiores, ou nos segmentos superiores dos lobos inferiores. Até 30% dos pacientes podem se apresentar com evidência radiográfica de doença em outros locais do pulmão. Isto é especialmente verdadeiro em idosos, onde os lobos inferiores podem ser afetados com maior freqüência, geralmente acompanhados de derrame pleural. Nestas situações, o diagnóstico diferencial com pneumonia ou um tumor de pulmão pode ser difícil. Um padrão miliar (presença de pequenos nódulos de distribuição difusa) pode ocorrer quando há disseminação hematogênica ou linfática. Resolução de tuberculose reativada deixa achados radiográficos característicos, tais como nódulos densos nos hilos pulmonares com ou sem calcificações, cicatriz fibronodular no lobo superior e bronquiectasia. Em pacientes com infecção recente pelo HIV, os achados radiológicos são similares à população sem HIV. Já nos pacientes com HIV em estágios avançados podem ter aspecto atípicos no Rx de tórax como infiltrado miliar, derrame pleural, envolvimento hilar e presença de linfonodos mediastinais. Portanto, os achados radiológicos do tórax deste paciente são compatíveis com tuberculose, e esta doença deve ser descartada neste momento. O campo diagnóstico do teste do escarro em pacientes com tuberculose miliar não é tão grande como em lesões cavitárias. Neste momento, a possibilidade de tuberculose é de aproximadamente 70%. Entretanto, outras doenças pulmonares podem se apresentar desta forma, incluindo doenças fúngicas (coccidioidomicose), granulomatosas (sarcoidose) e neoplásicas (linfoma).

O resultado do PPD foi negativo, com reação positiva a antígenos controle. A broncoscopia revelou inflamação brônquica leve a moderada. O exame do lavado broncoalveolar foi negative para cancer. Esfregaço para BAAR e fungos foi negativo.

Este homem não tem anergia, pois teve reação positiva para outros antígenos. Eu esperaria um PPD positivo, principalmente porque ele foi vacinado. Uma coloração normal para bacilos ácido-álcool resistente não descarta tuberculose. Embora o lavado broncoalveolar não descarte câncer, torna esta possibilidade menos provável. Coloração para fungos também foi negativa, diminuindo esta possibilidade. Eu ainda trataria empiricamente tuberculose até que os resultados das culturas fossem disponíveis, entretanto há necessidade de descartar uma doença granulomatosa ou neoplásica. Eu procuraria por evidências adicionais de sarcoidose como lesões de pele ou anormalidades oculares no exame pela lâmpada de fenda. A decisão de iniciar tratamento corticosteróide empírico é complicada, sem evidências mais convincentes de que este paciente tenha sarcoidose. Sarcoidose é uma doença sistêmica de etiologia desconhecida, caracterizada em aproximadamente 90% dos pacientes por inflamação granulomatosa do pulmão. A incidência é maior em negros norte-americanos e brancos descendentes de europeus do norte. Entre os negros, as mulheres são mais frequentemente afetadas que os homens. O início da doença é geralmente na terceira ou quarta décadas de vida. Os pacientes podem se apresentar com mal estar, febre e dispnéia de início insidioso. Sintomas relacionados com a pele, olhos, meninges, nervos periféricos, músculos, fígado, rins ou coração também podem ser vistos. Alguns pacientes são assintomáticos e procuram atenção médica após achados anormais no Rx de tórax (tipicamente linfadenopatia paratraqueal direita e hilar bilateral). Estes achados foram vistos neste paciente. Outros achados incluem eritema nodoso, alargamento da glândula parótida, hepatoesplenomegalia e linfadenopatia. Os achados laboratoriais podem mostrar leucopenia, VHS elevado, hipercalcemia (5% dos pacientes) e hipercalciúria (20%). Os níveis de enzima conversora da angiotensina são elevados em 40 a 80% dos pacientes com doença ativa. Espirometria pulmonar pode revelar presença de obstrução das vias aéreas, mas alterações restritivas com volumes pulmonares diminuídos são mais comuns. Anergia dos testes de pele estão presentes em 70% dos pacientes. ECG pode mostrar distúrbios da condução e arritmias. Os achados radiológicos do tórax são variáveis e incluem adenopatia hilar bilateral isolada (estágio I), adenopatia hilar e envolvimento paratraqueal (estágio II) ou envolvimento parenquimatoso isolado (estágio III). Envolvimento parenquimatoso é geralmente manifestado radiologicamente por infiltrado reticular difuso, mas infiltrados focais, nódulos e, raramente, cavitações, podem ser vistos. Derrame pleural é notado em menos de 10% dos pacientes. O diagnóstico de sarcoidose geralmente requer demonstração histológica de granuloma não-caseoso na biópsia de pacientes com quadro clínico compatível. Outras doenças granulomatosas (beriliose, tuberculose, infecções fúngicas) e linfoma devem ser excluídos. Biópsia de locais facilmente acessíveis (linfonodos palpáveis, lesões de pele e glândulas salivares) é provável de ser positiva. Biópsia pulmonar transbrônquica tem um alto campo diagnóstico (75 a 90%), especialmente em pacientes com sintomas pulmonares e evidência radiológica de envolvimento parenquimatoso. Alguns autores acreditam que a biópsia tecidual não é necessária em pacientes com achados radiológicos típicos (principalmente estágio I) com quadro clínico compatível (ex. mulheres negras com eritema nodoso). Biópsia é essencial se os achados clínicos e radiológicos sugerem a possibilidade de um diagnóstico alternativo, como linfoma. O lavado broncoalveolar na sarcoidose é geralmente caracterizado por aumento dos linfócitos e uma alta relação entre CD4/CD8. Embora não estabeleça o diagnóstico, pode ser útil para seguir a atividade da doença em pacientes selecionados. Todos os pacientes com sarcoidose necessitam uma avaliação oftalmológica completa. A indicação para tratamento com corticosteróides orais (prednisona 0.5 a 1 mg/kg/dia) inclui sintomas constitucionais incapacitantes, hipercalcemia, irite, uveíte, artrite, envolvimento do sistema nervoso central, envolvimento cardíaco, hepatite granulomatosa, lesões cutâneas diferentes de eritema nodoso e lesões pulmonares progressivas. Terapia de longo prazo é geralmente necessária, durante meses a anos. Algumas vezes a resposta pode levar até um a dois anos para ocorrer. Os níveis de ECA geralmente caem com a melhora clínica. Drogas imunossupressoras devem ser tentadas em pacientes que não respondem ou não toleram os corticosteróides. Aproximadamente 20% dos pacientes com envolvimento pulmonar sofrem lesão pulmonar irreversível, caracterizada por fibrose progressiva, bronquiectasia ou cavitações. Os pacientes necessitam acompanhamento de longo prazo. Exame físico anual, além de testes de função pulmonar, painel bioquímico (principalmente cálcio), avaliação oftalmológica, radiografia de tórax e ECG são recomendados.

Os níveis séricos de enzima conversora de angiotensina foram normais. Tratamento com isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol foi iniciado. O paciente foi aconselhado a retornar ao trabalho após duas semanas. Sua esposa foi solicitada a realizar PPD e Rx de tórax.

Os níveis da enzima conversora da angiotensina não são sensíveis nem específicos para o diagnóstico de sarcoidose, pois podem ser anormais em qualquer processo granulomatoso. Eu ainda procuraria por mais evidências de sarcoidose. Eu checaria os níveis de cálcio, fosfatase alcalina e examinaria suas glândulas lacrimais e parótidas. Se o Rx de sua esposa for anormal, tuberculose seria a minha primeira hipótese diagnóstica.

Ele continuou a ter febre, e duas semanas mais tarde a dispnéia retornou. As culturas para BAAR estavam negativas. Como ele não era anérgico e tinha se exposto à tuberculose como medico na Índia, a terapia antituberculosa foi mantida até o resultado final das culturas.

A ausência de melhora à terapia tríplice adicionada de etambutol é preocupante. Ou este paciente tem uma tuberculose multi-resistente ou seu diagnóstico não é tuberculose. Eu iniciaria prednisona para tratar uma possível sarcoidose devido à piora da dispnéia e continuaria com o esquema anti-tuberculose e obteria um novo Rx de tórax para observar se houve piora radiológica após o início do tratamento anti-tuberculoso.

Os sintomas melhoraram bastante após três dias de tratamento com prednisona. Um procedimento diagnóstico foi realizado.

O procedimento diagnóstico foi uma biópsia transbrônquica que mostrou granuloma não caseoso. Tendo em vista as culturas negativas, a ausência de resposta ao tratamento da tuberculose e a melhora com corticosteróide, o diagnóstico de sarcoidose pulmonar é altamente provável, e tuberculose improvável, embora a epidemiologia seja positiva. Distinguir entre tuberculose e sarcoidose pulmonar pode ser um desafio, ainda para médicos experientes. Sintomas inespecíficos como febre, mal estar, fadiga, anorexia e perda de peso podem ocorrer em ambas as doenças. Para complicar ainda mais o diagnóstico, tosse e dispnéia também é comum a ambas as doenças. Ambas podem afetar os mesmos focos extra-pulmonares, podem ter histopatologia similar e podem mimetizar outras doenças. Embora um diagnóstico específico seja recomendável antes do tratamento ser instituído, nós devemos fazer algumas escolhas terapêuticas antes de iniciar qualquer droga. À medida que o quadro clínico evolui, nós devemos fazer um balanço dos riscos e benefícios de testes adicionais. A principal decisão é determinar se uma doença é suficientemente provável que os benefícios potenciais do tratamento sobrepõem os possíveis efeitos colaterais e complicações do tratamento. Como era o caso do paciente discutido aqui, outras alternativas terapêuticas podem ser necessárias quando há mais de uma alternativa diagnóstica e quando o tratamento de uma das possibilidades pode piorar o quadro da outra possibilidade. Neste caso, o uso de corticosteróides para o tratamento de uma possível sarcoidose pode agravar significativamente o curso de uma tuberculose subjacente, se o tratamento anti-tuberculoso não for instituído concomitantemente. Os dois médicos que cuidaram deste médico residente e o médico que discutiu o caso neste artigo foram particularmente atraídos pelo diagnóstico de tuberculose, principalmente pela origem, história de viagens e exposição ocupacional do paciente. A verdade é que se o paciente fosse um médico residente de origem americana ou européia, o diagnóstico de tuberculose jamais seria o principal. Infelizmente há um grande preconceito com o terceiro mundo por parte do primeiro mundo, mesmo que com certa razão. Mas será que após a negatividade do PPD e o achado de granuloma não-caseoso na biópsia transbrônquica o diagnóstico de tuberculose pode ser abandonado?

Uma simples análise Bayseniana oferece alguma ajuda para responder esta pergunta. Deixe-nos assumir que o paciente tem um dos dois diagnósticos: tuberculose ou sarcoidose. A tabela 1 sumariza a probabilidade de cada achado na presença de tuberculose e sarcoidose, tanto isoladamente como em combinação. Veja que a probabilidade de um teste de PPD negativo em um paciente com tuberculose miliar varia de 10 a 62%, com uma média de 25%. Aproximadamente 50% dos pacientes que recebem a vacina BCG tornar-se-ão PPD negativo após 10 anos e quase todos serão negativos após 25 anos. Como sarcoidose não resulta em PPD positivo e como o paciente em questão foi vacinado há mais de 30 anos, a probabilidade de ele ser PPD negativo é 95% se ele tiver sarcoidose e apenas 25% se ele tiver tuberculose miliar. Embora 20% dos pacientes com tuberculose possam ter granuloma não-caseoso (ao invés do típico granuloma caseoso), 100% dos pacientes com sarcoidose mostram este achado. Por outro lado, 20% dos pacientes com sarcoidose com Rx de tórax anormal são negativos e 95% dos pacientes com tuberculose são negativos. Mesmo com esse parâmetro sendo favorável ao diagnóstico de tuberculose, quando analisamos os três juntos, a probabilidade de sarcoidose é maior que tuberculose.

Um cálculo Bayseano mostra que se a probabilidade de tuberculose em termos clínicos é de 70% antes dos três resultados laboratoriais serem conhecidos (valor sugerido pelo médico na discussão), a probabilidade revisada após os exames laboratoriais ainda é bastante alta (37%), embora a probabilidade de sarcoidose tenha sido calculada como 67%. Esta probabilidade de 1/3 ainda justifica o uso de terapia anti-tuberculose até que os resultados das culturas sejam negativos, mesmo considerando que as drogas anti-tuberculosas podem ter alguns efeitos colaterais potencialmente fatais, tais como hepatite, pois tuberculose miliar é uma doença potencialmente fatal. Claro que se o paciente tem sarcoidose, o ideal seria não utilizar essas drogas, devido ao pequeno risco de uma reação fatal.

Também se deve calcular a probabilidade de os benefícios do tratamento igualarem ou superarem os riscos, condição conhecida como limiar terapêutico. Para valores acima do limiar, tratamento anti-tuberculoso deve ser dado e valores abaixo do limiar (baixa probabilidade), o tratamento deve ser retirado. Os valores do limiar terapêutico dependem do razão benefício/risco (B/R) para o tratamento calculada através da seguinte equação: 1/(B/R+1). Como alguém pode estimar os benefícios e riscos para determinar o limiar terapêutico? Mais uma vez nós iremos assumir que o paciente tem um dos dois diagnósticos: tuberculose ou sarcoidose. Se nós assumirmos que tuberculose miliar tratada tem uma taxa de mortalidade de 20% e mortalidade de 50% quando não tratada, o tratamento é associado com um benefício de 30% em termos de sobrevida, se o paciente tem tuberculose e recebe tratamento adequado. Hepatite relacionada com isoniazida é o principal risco do tratamento. Embora o risco desta complicação é tipicamente 1%, ela é um pouco maior em homens asiáticos (o paciente é indiano), chegando a 2%. Cada paciente em que hepatite relacionada com isoniazida se desenvolve tem uma chance de morrer de 7,6%. Portanto, a taxa de mortalidade geral de homens asiáticos que recebem isoniazida é de 2% x 7.6%, ou aproximadamente 0,15%. Pacientes que são tratados por tuberculose miliar, mas que na realidade tem sarcoidose seriam expostos a este risco sem qualquer benefício. A razão benefício/risco para o tratamento é, portanto, aproximadamente 200 (30 porcento/0.15 porcento). Portanto, o limiar terapêutico para tratamento anti-tuberculoso é 0,5% ou 1/200. Em retrospecto, considerando que a probabilidade de tuberculose excede 2%, a terapia anti-tuberculosa empírica é apropriada. O médico que discutiu o caso estimou que a probabilidade de tuberculose era de 70%, um valor que excede em muito o limiar terapêutico, onde a terapia teria um efeito benéfico substancial. Mesmo após os resultados do PPD, níveis de ECA e biópsia transbrônquica, os valores de probabilidade de tuberculose eram de quase 40%, valor bem superior aos baixos limiares terapêuticos. Vendo de uma outra forma, se a probabilidade de tuberculose é de 40%, em uma população de 10.000 homens com um quadro similar nós teríamos 4000 com tuberculose e 6000 com sarcoidose. Sem terapia anti-tuberculosa, somente 2000 daqueles com tuberculose iriam sobreviver (50% de mortalidade). Com terapia anti-tuberculosa, 3200 iriam sobreviver (20% de mortalidade). Por outro lado, 5 iriam morrer de hepatite relacionada com isoniazida. Já entre os 6000 pacientes com sarcoidose, 9 iriam morrer de hepatite relacionada com isoniazida. Para a população de 10.000 homens como um todo, o uso de tratamento anti-tuberculose melhoraria a sobrevida em 1186 homens (1200 – 5 – 9). Se o paciente tivesse tuberculose, mas fosse tratado com corticosteróides para uma sarcoidose presumida em adição a agentes anti-tuberculosos, qual seria o risco de tuberculose disseminada? O risco de terapia corticosteróide em pacientes com tuberculose pulmonar, especialmente tuberculose miliar, é muito menor que geralmente acreditado. Vários estudos nas últimas quatro décadas destacam a segurança, quando não o benefício dos corticosteróides na tuberculose em conjunto com tratamento anti-tuberculose. Por outro lado, se o paciente tiver sarcoidose, o não uso inicial de corticosteróide tem algum risco, desde que o paciente esteja estável? Tratamento agressivo de pacientes com sarcoidose pulmonar que têm sintomas respiratórios progressivos diminui o risco de extensão das lesões aos órgãos. A razão benefício/risco para o uso de corticosteróides para um diagnóstico presumido de sarcoidose na presença de dispnéia progressiva, como ocorreu com o paciente deste caso, deveria ser alta e o limiar terapêutico deveria ser muito baixo. Com base nestes dados, nós podemos concluir que, uma vez que dispnéia progressiva se desenvolveu e a probabilidade de sarcoidose excedeu 60%, os médicos assistentes adicionaram corticosteróides à terapia anti-tuberculosa, até que os resultados das culturas para tuberculose fossem disponíveis e o diagnóstico de tuberculose pudesse ser descartado.
A chave para abordar pacientes que estão agudamente doentes e tem diagnóstico duvidoso é pensar probabilisticamente. Primeiro, use as informações disponíveis para estimar a probabilidade de cada doença. Uma vez que isto tenha sido feito, avalie os benefícios potenciais e os riscos de cada intervenção terapêutica empírica. Algumas vezes, melhor que escolher entre duas opções terapêuticas, a melhor estratégia pode ser oferecer ambos os tratamentos e esperar por mais informação durante o curso clínico e investigatório, como foi feito no caso em questão.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

 

Caso Clínico 17/08/2011

Uma mulher de 33 anos foi internada no hospital por edema facial, febre e hipotensão. Ela tinha história de esclerose múltipla remitente-recorrente e sofria de fadiga grave. Três semanas antes da admissão, o neurologista dela prescreveu modafinil para tratar a fadiga. Uma semana mais tarde ela desenvolveu edema periorbital, secreção conjuntival clara e um rash eritematoso e pruriginoso na face e couro cabeludo. Ela suspendeu o uso do modafinil e iniciou um anti-histamínico a base de difenidramina, mas o rash não melhorou. Três dias após ela procurou a emergência de um hospital próximo à casa dela e ciproeptadina foi prescrita, mas o farmacêutico vendeu ferfenazina por engano. Dois dias mais tarde ela foi reavaliada no mesmo hospital, quando o erro foi notado. Prednisona 60 mg/dia e ciproeptadina foram prescritos. O rash facial melhorou transitoriamente, porém recorreu 5 dias antes da admissão. Lesões similares se desenvolveram nas costas e tórax.

A paciente sofre de esclerose múltipla, uma doença desmielinizante crônica do sistema nervoso central, na forma de surtos e remissões, a mais comum das apresentações da esclerose múltipla. Outras formas de apresentação da esclerose múltipla incluem primariamente progressiva, secundariamente progressiva e progressiva com surtos. O sintoma mais comum da esclerose múltipla é fadiga, presente em quase todos os pacientes, independente dos déficits neurológicos focais determinados pelas placas de desmielinização. Modafinil é uma droga estimulante do sistema nervoso central não anfetamínica, aprovada pelo FDA para o tratamento da narcolepsia, entretanto, também é utilizada de forma “off-label” em pacientes com transtorno de hiperatividade com déficit de atenção, transtorno do sono associado com trabalho em turnos e para o tratamento da fadiga nos pacientes com esclerose múltipla e outras doenças crônicas. A ocorrência de eritema periorbital e secreção conjuntival clara associada com rash pruriginoso na face e couro cabeludo sugere um processo alérgico. Como este quadro iniciou temporalmente relacionado com o início do modafinil, esta droga foi interrompida. O uso de um anti-histamínico (difenidramina) não aliviou os sintomas, que só melhoraram parcialmente após a introdução de prednisona e ciproheptadina (anti-histamínico). Entretanto, após poucos dias os sintomas recrudesceram e afetaram as costas e o tórax, sugerindo falência do tratamento.

Ao exame físico havia edema ao redor dos olhos, nariz, orelha esquerda e um rash urticariforme no dorso. Ciproeptadina foi suspensa e ranitidina foi iniciada. Durante os próximos 2 dias um edema doloroso da mandíbula esquerda e dor nos quadris se desenvolveram e o edema facial e o eritema próximo ao olho esquerdo aumentaram. Ela retornou ao hospital próximo da casa dela e recebeu doxiciclina para uma suposta celulite da face. No dia anterior à admissão o edema facial piorou, com desconforto na orelha esquerda, visão borrada, dor pélvica e disúria. Ela então procurou o hospital novamente.

A piora do edema facial eritematoso fez com que o médico assistente inicia-se doxiciclina, um antibiótico do grupo das tetraciclinas. Este grupo de antibióticos tem ação bacteriostática e têm ação contra várias bactérias gram-positivas e gram-negativas, principalmente mycoplasmas, ricketsias, clamídia, espiroquetas e alguns protozoários (ameba). A atividade antipneumocócica é similar a dos macrolídios. Quase todos os Haemophilus influenzae são inibidos. Também tem atividade moderada contra alguns enterococos resistentes a vancomicina. Devido à emergência de cepas resistentes, as tetraciclinas têm perdido muito de sua utilidade como agentes de amplo espectro. Atualmente são as drogas de escolha para infecções por clamídia, mycoplasma, ricketsias e vibriões (cólera). Devido à boa atividade contra pneumococos, hemófilos, clamídia, legionela e mycoplasma, a doxiciclina é uma boa opção para o tratamento empírico da pneumonia adquirida na comunidade. Celulite é uma infecção difusa da pele causada geralmente por agentes gram positivos, embora bacilos gram-negativos como E coli possam ser a causa em alguns pacientes. As lesões geralmente são vermelhas e quentes. O tratamento empírico com cefalexina ou oxacilina geralmente é adequado. A piora da acuidade visual associada com piora do edema facial sugere comprometimento da órbita com dano ao nervo óptico. Tratamento efetivo deve ser rapidamente instituído para evitar perda da visão. Dor pélvica e disúria sugerem uma infecção urinária concomitante.

Ela parecia ansiosa. A temperatura era de 37.5°C, a pressão arterial de 131/74 mm Hg, o pulso de 148 bpm, e a saturação de O2 de 96% em ar ambiente. Havia um rash facial maculopapular e edema de face, da glândula parótida esquerda, do canal auditivo externo esquerdo e linfadenopatia cervical bilateral. Os níveis de glicose sérica, eletrólitos, função renal e hepática estavam normais. O hematócrito estava em 46% e a hemoglobina em 16 g/dl, 9200 leucócitos com discreta linfopenia. Noventa minutos após a chegada na emergência, meperidina e prometazina foram administradas, seguidas por famotidina e difenidramina. Logo após ela se queixou de tontura e escurecimento visual. A pressão arterial foi medida em 70/40 mm Hg, e a temperatura foi de 38.5°C. Um eletrocardiograma mostrou taquicardia sinusal e leve desvio do eixo para a direita. Clindamicina, prednisona e mais difenidramina foram administrados, seguidos por paracetamol e hidrocodona. Aproximadamente 18 horas após a chegada ao hospital, ela foi transferida para um hospital de referência para avaliação otorrinolarigológica do edema facial e do pescoço.


A paciente estava taquicárdica e subfebril. A pressão arterial e a saturação de oxigênio estavam normais. Após administração de meperidina (analgésico narcótico) e prometazina (anti-histamínico) a paciente apresentou sintomas pré-sincopais, queda da pressão arterial e aumento da temperatura. Estes sintomas podem ter sido precipitados pelas drogas administradas, mas podem representar uma piora do quadro infeccioso. A linfadenopatia cervical sugere um processo reativo. O hemograma não é infeccioso, embora mostre leve linfopenia. O ECG mostrou apenas taquicardia sinusal, um achado inespecífico. A clindamicina é uma antibiótico ativo contra organismos gram-positivos, incluindo S. pneumoniae, S. viridans, streptococus do grupo A e S. aureus, embora resistência tenha sido descrita para todos estes germes. Enterococos, MRSA e S. epidermidis são resistentes. Adicionalmente, a clindamicina é ativa contra anaeróbios, incluindo bacteróides, clostridium, peptococcus, prevotella, peptostreptococcus e fusobacterium. Entretanto, resistência tem sido descrita em 10 a 20% dos bacteróides isolados, e agentes alternativos devem ser considerados em infecções muito graves causadas por anaeróbios. A clindamicina é o agente de escolha para infecções anaeróbias menos severas como pneumonia aspirativa, infecções pélvicas e abdominais, frequentemente em combinação com outras drogas (aminoglicosídeos, cefalosporinas, fluorquinolonas). Sucesso também tem sido relatado em osteomielite stafilocócica e associada com penicilina na síndrome do choque tóxico causada por estreptococos do grupo A. A clindamicina também é usada nos pacientes com neurotoxoplasmose alérgicos à sulfadiazina.

Esclerose múltipla foi diagnosticada 4 anos atrás após um episódio de neurite óptica. Uma lesão hiperintensa em T2 e FLAIR foi observada na RM do encéfalo. Seus sintomas na ocasião eram visão borrada, formigamento e fraqueza no braço e perna esquerdos, além de fadiga grave. Um pulso com metilprednisolona foi administrado. Outros medicamentos prescritos incluíram acetato de glatirâmer, amantadina e daclizumab.

Neurite óptica é uma das manifestações mais comuns da esclerose múltipla. Ela se caracteriza por perda unilateral da visão, que se desenvolve de horas a poucos dias. O déficit varia de escotomas pequenos a perda da percepção da luz. Dor ocular, principalmente pela movimentação é característica. Perda do reconhecimento de cores é geralmente a manifestação mais precoce. No exame físico há perda do reflexo fotomotor no lado afetado. Quando a inflamação atinge o disco óptico (papilite), há edema de papila, mas em 2/3 dos pacientes a inflamação é retrobulbar, não causando anormalidades no fundo de olho. Os pacientes geralmente recuperam gradualmente a acuidade visual. Se houver lesão severa, atrofia da papila óptica pode se desenvolver. Quando ela ocorre como primeira manifestação da doença é chamada de síndrome clinicamente isolada. Qualquer apresentação isolada inicial de esclerose múltipla é assim chamada. Muitos pacientes com neurite óptica não desenvolvem esclerose múltipla, mas aproximadamente 40% irá desenvolver EM em 10 anos. Os principais fatores de risco para evolução para EM são sexo feminino, presença de múltiplas lesões hiperintensas em T2 ou FLAIR na ressonância magnética do encéfalo e presença de bandas oligoclonais no líquor. Outras causas de neurite óptica incluem infecções virais (sarampo, caxumba, influenza, zoster), doenças auto-imunes (particularmente lúpus eritematoso sistêmico), sífilis, deficiência de vitamina B12 e por disseminação de inflamação das meninges, órbita e seios paranasais. Também se devem descartar lesões compressivas do nervo óptico ou tumores primários do nervo óptico no diagnóstico diferencial da neurite óptica. Pulsoterapia com metilprednisolona é o tratamento de escolha para os surtos de esclerose múltipla e para o tratamento de um episódio isolado de neurite óptica idiopática. O uso de corticóide oral piora o prognóstico da neurite óptica. Em pacientes com episódio isolado de neurite óptica, mas com múltiplas lesões desmielinizantes na RM do encéfalo, há benefício do início precoce de terapia com interferon beta ou acetato de glatirâmer, com redução do risco de evolução para EM de 25% em 2-3 anos.
O copaxone (acetato de glatirâmer) utilizado no passado pela paciente é um copolímero aprovado pelo FDA para o tratamento da esclerose múltipla com forma em surtos e remissões. Ele pode ser usado em alternativa ao uso dos interferons beta, reduzindo o número de surtos e de lesões captantes de contraste na RM. Ao contrário dos interferons, o copaxone não causa anormalidade da função hepática, leucopenia ou disfunção tireoidiana, além de não estar associado com depressão. A típica reação flu-like associada com o interferon não ocorre com o copaxone. Entretanto, aproximadamente 15% dos pacientes usando copaxone experimentam uma reação sistêmica auto-limitada após a injeção caracterizada por opressão torácica, rubor cutâneo, ansiedade, dispnéia e palpitações. Esta reação é imprevisível, pode ocorrer em qualquer momento durante o tratamento, e frequentemente é confundida com isquemia cardíaca. A dose do copaxone é de 20 mg SC ao dia. A amantadina é usada para fadiga e o dadizumab é um anticorpo monoclonal imunomodulador em fase de testes para EM.

Ela tinha história de transtorno bipolar que estava sendo tratado com sertralina e oxcarbazepina. Eletrocardiograma e ecocardiograma foram normais 2 anos antes da admissão. Ela era alérgica a amoxacilina e doxiciclina. Ela vivia com o marido e um filho, fumava 5 a 10 cigarros por dia, bebia raramente e não usava drogas ilícitas. Havia história familiar de doença arterial coronariana, hipertensão, transtorno bipolar, e uma tia tinha lúpus eritematoso sistêmico.

O transtorno bipolar faz parte dos transtornos do humor, onde episódios de depressão ocorrem concomitantes ou não a episódios de mania. Os critérios diagnósticos para um episódio depressivo maior, segundo o DSM-IV incluem: (1) humor depressivo a maior parte do dia, quase todos os dias; (2) interesse ou prazer muito diminuídos; (3) perda ou ganho significativo de peso; (4) insônia ou hipersônia; (5) agitação ou retardo psicomotor; (6) falta de energia ou fadiga; (7) sentimento de desvalia ou culpa inapropriada; (8) capacidade diminuída para pensar ou se concentrar; (8) pensamentos recorrentes de morte ou suicídio. Os critérios diagnóstico para mania, segundo o DSM-IV incluem: presença de um período de humor anormal e persistentemente elevado ou irritável. O período de alteração do humor geralmente está acompanhado de (1) auto-estima aumentada ou sensação de grandiosidade; (2) necessidade de sono diminuída; (3) frequência e intensidade da fala aumentada; (4) fuga de idéias, com experiência subjetiva de que os pensamentos estão fugindo; (5) distraibilidade; (6) aumento das atividades; (7) comportamento social inadequado e (8) falta de julgamento para atividades importantes (compras desnecessárias, gasto inadequado de dinheiro, indiscrições sexuais e investimentos arriscados nos negócios). História familiar é muito comum no transtorno bipolar.


No exame físico a pressão arterial era de 118/70 mm Hg, o pulso de 135 bpm, e a temperatura de 38.9°C; a frequência respiratória de 20, e a saturação de O2 de 99% em ar ambiente. Ela aparentava gravemente enferma. O exame físico estava inalterado. Sangue foi colhido para hemoculturas. Um ECG mostrou taquicardia sinusal e alterações inespecíficas de ST e T. Vancomicina, levofloxacino, clindamicina e hidrocortisona foram iniciados.
Uma TC do pescoço e um Rx de tórax foram realizados.


Neste momento a paciente parecia doente, taquicárdica e febril. A tomografia do pescoço realizada após a administração de contraste mostrou uma opacidade arredondada com halo de captação periférica e necrose central no músculo masseter esquerdo, considerado como um possível abscesso. Linfadenopatia cervical esquerda também foi observada. Embora um abscesso de masseter seja uma condição rara, germes incluindo bactérias, fungos e parasitas (cisticercose) podem causar abscessos localizados nesta área. Cobertura para gram-positivos, gram-negativos, MRSA e anaeróbios foi instituída após início de vancomicina, levofloxacina e clindamicina. Um novo ECG foi novamente inespecífico, mostrando apenas taquicardia sinusal e anormalidades inespecíficas de ST e T.

Na manhã seguinte, 21 horas após a chegada ao hospital ela relatou opressão torácica, pior durante a inspiração. Um ECG mostrou taquicardia sinusal, desvio do eixo para a direita, elevação de 1 a 2 mm no segmento ST em DI, aVL, V4, V5 e V6. Também foi visto depressão de ST < 1 mm em DIII, aVR e V1. Uma CK total foi de 2830 U/l, a CK-MB foi de 31 ng/ml e a troponina foi de 1 ng/ml. Heparina e metoprolol foram administrados EV. A pressão arterial caiu para 92/53 mm Hg e então para 71/30 mm Hg, e dopamina e soro fisiológico foram infundidos EV. O ecocardiograma transtorácico revelou leve disfunção ventricular esquerda com hipocinesia da parede inferior e septo. A fração de ejeção do ventrículo esquerdo foi de 43%. Havia um discreto derrame pericárdico. Ela foi então transferida para a UTI cardíaca.

Dor torácica sempre é um sintoma que gera muita ansiedade nos pacientes, e de certa forma, nos médicos assistentes também. Pode ser causada por várias doenças cardíacas, pulmonares, pleurais, musculoesqueléticas, radiculares, esofageanas e psiquiátricas. Isquemia miocárdica é uma causa frequente de dor torácica cardíaca e a mais importante a ser identificada para prevenir complicações. Ela é mais frequentemente sentida como sensação de desconforto e opressão que dor propriamente dita. Isto aumenta ainda mais a possibilidade de ser ignorada pelo paciente e pelo médico. Sintomas isquêmicos geralmente melhoram dentro de 5 a 20 minutos, mas podem durar mais. Sintomas progressivos ou durante o repouso podem representar uma angina instável, devido à ruptura e trombose de uma placa aterosclerótica coronariana. Episódios prolongados frequentemente representam infarto do miocárdio, embora 1/3 dos pacientes com IAM não tenham dor. Quando presente, a dor geralmente é acompanhada de ansiedade e inquietude. A localização geralmente é retroesternal ou precordial esquerda com possível irradiação para o pescoço, mandíbula, ombro, superfície medial do braço, região epigástrica ou região dorsal. Dor isquêmica pode ser precipitada por exercício, refeições, frio, estresse ou uma combinação destes fatores. Pode ser aliviada pelo repouso na angina estável, mas não na angina instável ou no infarto. Outras causas de dor torácica cardíaca incluem miocardiopatia hipertrófica, estenose aórtica, pericardite e miocardite. Pericardite pode se acompanhar de frêmito cardíaco e melhora com a posição supina e inclinação para frente. Tanto pericardite como miocardite geralmente se acompanham de febre e podem piorar com a respiração, simulando dor pleurítica. Prolapso de válvula mitral também pode causar dor torácica atípica em muitos pacientes. Dissecção aórtica classicamente produz dor torácica de forte intensidade com irradiação para o dorso. A dor torácica deste paciente piorava com a respiração e está acompanhada de febre, fazendo pensar a princípio em dor pleurítica (pneumonia), principalmente devido à paciente ter baixo risco de doença coronariana (mulher jovem, sem hipertensão, dislipidemia ou diabetes), embora tenha história familiar positiva e seja tabagista. Entretanto, o Rx de tórax foi normal. O hemograma também não é sugestivo de infecção bacteriana (ausência de leucocitose ou leucopenia, ausência de desvio à esquerda), mas mostra um grau de linfopenia, sugerindo uma doença viral. O ECG mostrado abaixo evidenciou taquicardia sinusal com elevação difusa do segmento ST de 1 mm ou mais nas derivações DI, DII, AVL, V2 e V6. As enzimas cardíacas estavam altas (CK total 2872, CK-MB 31.8 e troponina 1.04) e aumentaram ainda mais quando repetidas após 12 horas (CK total 3098, CK-MB 38.8 e troponina 1.48) e 24 horas (CK total 2574, CK-MB 52.2 e troponina 3.95). Uma dosagem do fragmento N-terminal do BPN (peptídeo natriurético cerebral) foi bastante elevada (7988). Embora analisando esses dados, inicialmente nós possamos ter a impressão de síndrome coronariana aguda, a idade e o sexo da paciente, a elevação difusa de ST não obedecendo uma distribuição arterial específica, a elevação relativamente discreta dos marcadores cardíacos e a disfunção ventricular esquerda traduzida pela elevação do peptídeo natriurético cerebral sem tradução eletrocardiográfica nos fazem pensar em miopericardite. A presença de febre reforça ainda mais esta suspeita. A queda acentuada da pressão arterial após a administração de um betabloqueador (metoprolol) mostra a dependência dela em aumentos simpaticamente mediados da frequência cardíaca e na contratilidade cardíaca para manter a pressão arterial. Estes achados sugerem um débito cardíaco grandemente reduzido. O ecocardiograma transtorácico mostrou leve disfunção sistólica do ventrículo esquerdo com hipocinesia das paredes inferior e septal e uma pequena efusão pericárdica, com inversão atrial direita

Na chegada à UTI, a PA era de 149/119 mm Hg, com pulso paradoxal de 7 mm Hg, o pulso de 135 bpm, e a temperatura de 38.5°C; a frequência respiratória era de 20 e a saturação de O2 com cateter a 6 litros minutos foi de 90%. Crepitantes foram ouvidos em ambas as bases pulmonares. A pressão venosa jugular era de 11 cmH2O e não havia sinal de Kusmaull. O restante do exame cardíaco foi normal. Os membros estavam quentes e sem edema.

Embora tenha havido aumento da pressão arterial após ressucitação agressiva de volume, a reduzida pressão de pulso (diferença entre pressão sistólica e diastólica) sugere débito cardíaco baixo. Esta observação associada com pulso venoso jugular elevado e estertores crepitantes basais sugere disfunção miocárdica acentuada causada por um dos seguintes mecanismos: contratilidade diminuída, tamponamento cardíaco ou ambos. O pulso paradoxal é um sinal de tremendo significado diagnóstico e prognóstico, podendo ser visto em uma variedade de doenças cardíacas e extracardíacas. Refere-se à diminuição da amplitude ou desaparecimento do pulso durante a inspiração. É chamado de paradoxal porque os sons cardíacos podem ser ouvidos no precórdio enquanto o pulso radial não é sentido. Também pode ser medido pela mensuração da pressão arterial durante a inspiração e a expiração. Observa-se assim uma queda da pressão sistólica de mais de 10 mmHg durante a inspiração. Para entender melhor o pulso paradoxal, vamos revisar a fisiologia da influencia respiratória no volume de pulso em condições normais. A pressão arterial flutua durante o ciclo respiratório, caindo com a inspiração e aumentando com a expiração. As alterações na pressão intratorácica durante a respiração são transmitidas para o coração e grandes vasos. Durante a inspiração o ventrículo direito distende devido ao aumento do retorno venoso, o septo ventricular se abaúla em direção ao ventrículo esquerdo, reduzindo o tamanho do ventrículo esquerdo. Além disso, o aumento da perfusão sanguínea para os pulmões expandidos diminui o enchimento do ventrículo esquerdo e o débito cardíaco. Adicionalmente, a pressão intratorácica negativa durante a inspiração é transmitida para a aorta. A pressão negativa relativamente maior na circulação pulmonar comparada com o átrio esquerdo em pacientes com doenças pericárdicas causa fluxo reverso de sangue do átrio esquerdo para as veias pulmonares durante a inspiração. Portanto, a queda do débito cardíaco durante a inspiração reflete-se pela queda da pressão arterial sistólica, que em condições normais não é superior a 10 mmHg. De uma forma geral, o pulso paradoxal ocorrerá como resultado dos seguintes mecanismos, isoladamente ou em combinação: (1) limitação em aumentar o fluxo sanguíneo inspiratório para o ventrículo direito e para a artéria pulmonar; (2) represamento maior que o normal de sangue na circulação pulmonar; (3) grande diferença nas pressões intratorácicas durante a inspiração e expiração; (4) interferência no retorno venoso atrial durante a inspiração. Causas cardíacas de pulso paradoxal incluem tamponamento cardíaco, derrame pericárdico, pericardite constritiva, cardiomiopatia restritiva, embolia pulmonar, infarto agudo do miocárdio e choque cardiogênico. Causas pulmonares extracardíacas incluem asma brônquica e pneumotórax hipertensivo. Causas não-pulmonares extracardíacas incluem choque anafilático, volvo do estômago, hérnia diafragmática, obstrução da veia cava superior e obesidade mórbida. O sinal de Kussmaul é um aumento paradoxal na pressão e distensão venosa periférica durante a inspiração. O principal mecanismo é uma alteração na forma do pericárdio com aumento da pressão intrapericárdica e obstrução do retorno venoso para o coração. Geralmente acompanha o pulso paradoxal, embora não esteja presente nesta paciente.

Na manhã seguinte o Rx de tórax mostrou edema pulmonar peri-hilar. A área cardíaca e o mediastino estavam normais. Um novo ecocardiograma mostrou piora da função ventricular esquerda, com fração de ejeção de 32%, aumento da espessura da parede ventricular esquerda, disfunção ventricular direita e discreto derrame pericádico circunferencial, inversão ventricular e atrial direita, além de importante variação respiratória do fluxo mitral e tricúspide no doppler. O paciente foi levado para a hemodinâmica e um catéter de Swan-Ganz foi introduzido. A pressão atrial direita, a pressão diastólica final do ventrículo direito e a pressão capilar pulmonar média estavam entre 20 e 25 mmHg. O débito cardíaco foi de 2.2 litros por minuto. Pericardiocentese foi realizada, revelando uma pressão pericárdica média de 23 mmHg. Após a aspiração de 150 ml de um líquido rosáceo e discretamente turvo, o débito cardíaca subiu para 3.3 litros por minuto. A angiografia coronariana não mostrou obstruções.

O Rx evidenciou edema pulmonar peri-hilar e o segundo ecocardiograma mostrou piora dos parâmetros de função cardíaca. O débito cardíaco estava diminuído e aumentou após drenagem de 150 ml de derrame pericárdico por pericardiocentese. Um cateterismo coronariano não mostrou evidências de obstrução arterial. Embora a lista de cardiomiopatias seja extensa, a rápida deterioração da função sistólica desta paciente, na ausência de doença valvular ou isquêmica, sugere uma miocardite aguda. Uma outra possibilidade que foi brevemente considerada no diagnóstico diferencial foi o envolvimento cardíaco por sarcoma ou linfoma, tendo em vista a presença de febre, massa de tecidos moles (no masseter) e linfadenopatia cervical. Entretanto, o envolvimento miocárdico por tumores tipicamente se apresenta com fisiologia restritiva e arritmias, ao invés e disfunção sistólica rapidamente progressiva. Além disso, a análise do líquido pericárdico não mostrou células neoplásicas.

O fluido pericárdico aspirado tinha 1530 leucócitos/mm³, com 63% de eosinófilos. O nivel de proteínas foi de 4.5 g/dl, a amilase foi de 21 U/l e a LDH foi de 744 U/l. Um esfregaço de GRAM não revelou microorganismos. Solumedrol na dose de 1 grama EV ao dia foi iniciado.

O diagnóstico diferencial das miocardites também é extenso e várias formas de miocardite merecem consideração neste caso. Miocardite viral geralmente é precedida por um pródromo viral, embora este achado não seja sensível nem específico. Clinicamente se apresenta desde lenta progressão para insuficiência cardíaca até rápida progressão para choque cardiogênico. O ECG geralmente mostra alterações inespecíficas do segmento ST e da onda T. Achados ecocardiográficos variam de ventrículo esquerdo não dilatado na fase aguda até ventrículo esquerdo severamente dilatado na fase crônica. A apresentação desta paciente é melhor descrita como miocardite fulminante com ventrículo esquerdo espessado e não dilatado, com severa disfunção sistólica levando a choque cardiogênico. Os pacientes podem se recuperar espontaneamente ou morrer. Miocardite bacteriana seria uma possibilidade nesta paciente devido ao possível abscesso de masseter. Entretanto, na miocardite bacteriana era de se esperar um fluido pericárdico purulento e choque séptico necessitando uso de drogas vasoativas. Doença de Lyme pode se apresentar com rash cutâneo e miocardite, mas esta última é geralmente leve, ao contrário do que ocorreu nesta paciente. Miocardite auto-imune deve ser considerada nesta jovem mulher com diagnóstico prévio de uma outra doença auto-imune (esclerose múltipla), rash cutâneo e história familiar de lúpus eritematoso sistêmico. Tanto lupus quanto polimiosite podem estar associados com pericardite ou miocardite, mas a miocardite tende a ser leve. Entretanto, a paciente deste caso não tem manifestações sorológicas, dermatológicas ou reumatológicas destas doenças. A CK elevada poderia sugerir polimiosite, mas a ausência de fraqueza muscular e a elevação da troponina sugerem que essa elevação é conseqüência da doença miocárdica, e não da musculatura esquelética. Miocardite idiopática de células gigantes é uma doença fulminante que tipicamente afeta pessoas entre a 4° e a 5° décadas. Aproximadamente 20% dos pacientes tem uma doença auto-imune, embora miocardite de células gigantes não tenha sido descrita em associação com esclerose múltipla. É comum haver sintomas antecedentes de infecção do trato respiratório superior e dor torácica é incomum. Sintomas de insuficiência cardíaca se desenvolvem num período de semanas a meses, com deterioração rápida da função cardíaca nos estágios terminais da doença. Distúrbios de condução e taquicardia ventricular podem ocorrer devido à infiltração dos fascículos e do miocárdio, mas elevação do segmento ST é extremamente rara. Na ecocardiografia ocorre dilatação do ventrículo esquerdo sem hipertrofia, com áreas de hipocinesia segmentar ou difusa. A efusão pericárdica com eosinófilos, a dor torácica e a elevação do segmento ST vistos nesta paciente não são típicos de miocardite idiopática de células gigantes. Cardiomiopatias eosinofílicas apresentam uma grande variação de apresentações clínicas e achados anatomopatológicos. Endocardite de Loffler é uma miocardiopatia restritiva devido à doença endomiocárdica com trombo mural (endocardite trombótica), sendo secundária a eosinofilia de muitas causas (reação de hipersensibilidade a drogas, doença alérgica, infestação parasitária, síndrome de Churg-Strauss, poliarterite nodosa, leucemia eosinofílica e doença de Hodgkin). É mais comum em climas temperados. Febre e rash cutâneo são comuns. O início é subagudo. Falência ventricular direita é mais comum que esquerda. Eosinofilia periférica está quase sempre presente. Os biomarcadores de necrose geralmente são normais. O ECG mostra alterações inespecíficas de ST e T. Geralmente é irreversível. Fibrose endomiocárdica é uma cardiomiopatia restritiva afetando pessoas em climas tropicais com eosinofilia inconsistente, geralmente ausente. O início é gradual. A falência cardíaca também predomina no coração direito. Os biomarcadores geralmente são normais. O ECG mostra alterações inespecíficas de ST e T. Também é irreversível. Em ambas estas doenças, que provavelmente constituem um continuum, os sintomas tipicamente se desenvolvem gradualmente durante um período de meses a anos. Esta paciente, ao contrário, teve um declínio rápido da função ventricular esquerda. A miocardite eosinofílica aguda (também conhecida como miocardite por hipersensibilidade) é causada por uma reação por hipersensibilidade a drogas e se caracteriza por rash, febre, eosinofilia periférica e biomarcadores de necrose elevados. O ECG ocasionalmente mostra elevação de ST. O ecocardiograma mostra leve disfunção sistólica, espessamento do miocárdio por edema e, ocasionalmente, derrame pericárdico. Insuficiência cardíaca é tipicamente leve, e os pacientes geralmente morrem de arritmias, ao invés de falência de bomba. Muitas drogas tem sido implicadas, incluindo antibióticos (sulfonamidas, trimetroprim-sulfametoxazol, beta-lactâmicos, tetraciclinas, aminoglicosídeos), anti-arritmicos (quinidina, procainamida, lidocaína), anti-hipertensivos (metildopa), diuréticos (tiazídicos, furosemida), anticonvulsivantes (fenitoína, carbamazepina), antidepressivos tricíclicos, neurolépticos fenotiazídicos, clozapina, isoniazida, estreptomicina, antiinflamatórios não esteróides, sulfoniuréias e metilxantinas. O início dos sintomas após a introdução da droga varia de dias a meses. Geralmente é autolimitada, melhorando com a retirada da droga ofensora. A miocardite eosinofílica necrotizante aguda é uma forma fulminante da miocardite eosinofílica aguda por hipersensibilidade. Apresenta-se por falência cardíaca severa que se desenvolve dentro de dias a semanas. Embora o início de uma nova droga é frequentemente o precipitante (especialmente em pacientes com história de rash alérgico), ocorrem casos no contexto de infecções virais ou parasitárias, síndrome de Churg-Strauss ou síndrome hipereosinofílica. Febre e rash cutâneo são comuns. A apresentação frequentemente mimetiza um IAM com dor torácica, elevação de ST e aumento dos biomarcadores de necrose miocárdica. Eosinofilia está presente em muitos casos, mas pode ser leve. Ecocardiografia tipicamente revela câmaras de tamanho normal (refletindo início súbito da doença), espessamento da parede do coração (provavelmente refletindo edema) e disfunção sistólica difusa, biventricular. Derrame pericárdico é visto em 75% dos casos, ocasionalmente causando tamponamento cardíaco. A mortalidade excede 50% e a morte ocorre em poucos dias após o início da doença. O tratamento consiste no uso de pulso de corticosteróide, suporte ventricular mecânico ou farmacológico, ou ambos. Em razão do tempo de evolução e da severidade da doença desta paciente, o diagnóstico mais provável é miocardite eosinofílica necrotizante aguda. A presença de dor torácica, elevação do segmento ST, ausência de bloqueio de condução e a presença de derrame pericárdico tornam miocardite idiopática de células gigantes improvável. A exposição a medicamentos associados com miocardite por hipersensibilidade, a presença de rash e febre e a presença de líquido pericárdico rico em eosinófilos favorecem o diagnóstico de miocardite eosinofílica necrotizante aguda em vez de miocardite viral fulminante. Como o tratamento destas três doenças é diferente, é importante um diagnóstico específico.

A eletroforese de proteínas sérica e os níveis de imunoglobulinas estavam normais. Um fator anti-nuclear foi de 1:40 com padrão pontilhado. Outros auto-anticorpos foram negativos. No quarto dia de UTI o Rx de tórax mostrou piora do edema pulmonar. Um outro ecocardiograma não mostrou derrame pericárdico, mas detectou pior da função ventricular, com fração de ejeção ventricular esquerda de 16%. Um procedimento diagnóstico foi realizado.

A massa do masseter esquerdo revelou um processo inflamatório com infiltração de eosinófilos. A positividade do fator anti-nuclear de 1:40 é inespecífica, e a negatividade dos outros auto-anticorpos reforça a ausência de lúpus ou outras doenças inflamatórias do colágeno. Este ecocardiograma mostra piora acentuada da função cardíaca, indicando progressão da doença. Devido à importância do diagnóstico específico para o tratamento adequado, o procedimento diagnóstico realizado foi uma biópsia endomiocárdica que revelou extenso infiltrado inflamatório composto principalmente de eosinófilos e macrófagos, associados com necrose de miócitos.

Análise imunohistoquímica mostrou que os linfócitos eram quase inteiramente células T CD3, com predomínio de CD4 em relação ao CD8. Não havia espessamento endocárdico ou vasculite necrotizante, nem a presença de células gigantes. Não havia efeito citopático viral ou parasitas intracelulares e nenhum outro microorganismo foi encontrado. Na ausência de infecção, estes achados histológicos são compatíveis com miocardite eosinofílica necrotizante aguda. Neste paciente ela é mais provavelmente uma manifestação de severa miocardite por hipersensibilidade induzida por drogas. No momento da biópsia ventricular, um balão intra-aórtico foi instalado devido à deterioração da função ventricular esquerda. Inicialmente a função ventricular melhorou e a dopamina foi diminuída. Entretanto, na noite do quarto dia de hospital, uma taquiarritmia ventricular se desenvolveu e a paciente faleceu. Na autópsia, o coração estava aumentado (468 g), com leve dilatação ventricular e uma aparência moteada do miocárdio, refletindo necrose envolvendo mais de 80% da superfície miocárdica.

Músculo esquelético retirado do deltóide, diafragma e músculos extraoculares mostrou alterações histológicas similares às do músculo cardíaco. Análise do aspirado do músculo masseter esquerdo mostrou eosinófilos, macrófagos, fragmentos de músculo esquelético necrótico e células gigantes. No fígado havia pequenas zonas de necrose que contém células inflamatórias, predominantemente macrófagos, com um menor número de células T e raros eosinófilos. Estes achados indicam a presença de uma reação inflamatória necrotizante sistêmica, associada com eosinófilos e células gigantes. Vários processos sistêmicos podem se associar com células gigantes no coração, incluindo sarcoidose, febre reumática aguda, artrite reumatóide, vasculites associadas com ANCA (granulomatose de Wegener, poliarterite nodosa, síndrome de Churg Strauss), amiloidose, infecções (fungos, micobactérias, parasitas), nenhuma das quais estava presente nesta paciente. Tanto células gigantes como eosinófilos podem estar presentes na miocardite de células gigantes, miocardite por hipersensibilidade e miocardite eosinofílica necrotizante aguda. A paciente morreu em 2006 e, desde então, a caixa de modafinil foi modificada para incluir uma advertência da possibilidade de reação de hipersensibilidade multi-orgânica potencialmente fatal. O cérebro e a medula espinhal também foram examinado na autópsia. As placas de esclerose múltipla que foram identificadas nos exames de imagem foram confirmadas pelos exames macroscópicos e microscópicos, mostrando perda de mielina, com relativa preservação dos axônios. Embora as placas fossem crônicas, havia infiltrado inflamatório perivascular moderado com predomínio de células T CD4. Inflamação também estava presente na medula espinhal, predominantemente no cordão posterior, associada com gliose, mas sem desmielinização. Também havia inflamação das leptomeninges e da porção proximal dos nervos periféricos. Ainda embora nenhuma destas lesões continha eosinófilos , a distribuição do processo inflamatório (tanto no sistema nervoso central como no periférico) e a ausência de desmielinização ativa associada sugere que esta inflamação represente reação de hipersensibilidade necrotizante sistêmica em vez de esclerose múltipla.

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